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Época Monica de Bolle Monica de Bolle

Apocalipse Zumbi

As queimadas ardem, as fotos assombram, o mundo se mostra estupefato diante das estultices proferidas por membros do governo Bolsonaro

Não tenho escrito muito sobre o Brasil, o que não significa que não tenha pensado muito sobre o Brasil. Peço perdão aos fiscalistas que continuam presos às divagações sobre um Brasil que não mais existe. Deixamos há algum tempo de ser um país com dinamismo — nossa trajetória atual se assemelha muito ao que está acontecendo com vários países desenvolvidos. Não há volta da confiança que nos resgate da produtividade baixa, do envelhecimento populacional, da taxa de juros que já não estimula a economia. Não há pressão inflacionária no Brasil, apesar de não termos resolvido completamente nossos problemas fiscais. Apesar do nível de gastos ainda alto, há espaço para a queda dos juros, o que significa que já não sofremos do fenômeno conhecido como crowding out, situação em que os gastos pressionam os juros retirando o espaço do investimento privado. Jamais vivemos isso. Jamais vivemos o apocalipse zumbi que hoje caracteriza a economia brasileira.

Tomei emprestada a expressão do ministro das Relações Exteriores em sua breve passagem por Washington na semana passada. Ele se referia ao “climatismo”, à “ideologia de gênero”, à “perda dos valores cristãos” numa mistureba de pensamentos desconexos que deixou a audiência do think tank conservador onde falava um tanto perplexa. Água e folha da Amazônia foram mencionadas, mas no contexto do “climatismo” que quer impedir que “comamos carne”.

“As queimadas ardem, as fotos assombram, o mundo se mostra estupefato diante das estultices proferidas por membros do governo Bolsonaro”

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As milícias virtuais perseguem sem saber que o som dos arautos da barbárie as cega, caretas, quem são vocês?

O cheiro dos livros desesperados se espalha como espessa nuvem cada vez que o ministro da Educação tuíta alguma barbeiragem ou corta mais uma bolsa de estudos, mais uma verba para o desenvolvimento da ciência — uma das poucas coisas que podem salvar nossa economia do apocalipse zumbi. A educação moribunda nas mãos de gente que nada entende de educação impede a formação de capital humano, de gente qualificada que poderia contribuir para o crescimento futuro do país, hoje encalhado em mísero 1% ao ano.

O quadro internacional se apresenta como o deserto do Saara que não haverá de lançar chuva alguma sobre os automóveis de Roma. O Brasil, preso em seus debates improdutivos e cada vez menos civilizados, parece não enxergar suas próprias vulnerabilidades ante o inevitável agravamento da situação internacional. Uma guerra comercial, uma ameaça de forte desaceleração do crescimento, um embate entre Irã e Arábia Saudita com direito a Trump no meio, desestruturando o que já está desestruturado. Nosso apocalipse zumbi não haverá de aguentar qualquer um desses choques inevitáveis, mas gasta-se tempo com a inútil discussão sobre um teto de gastos que jamais deveria ter sido erguido da forma como foi — escrevi ao menos quatro artigos em 2016 defendendo um teto, mas não o da laje solta por excesso de rigidez que puseram sobre nossa cabeça e que agora ameaça ruir. Há três anos disse isso para o descontentamento de muitos, inclusive de seus formuladores. O que dizem hoje os economistas? O que já havia sido dito, talvez sem a elegância sutil de Bobô.

Agora, com o mercado de trabalho precário e consumidores desiludidos, querem congelar o salário mínimo — mais nova espada e seu corte. Quem defende a ideia desconhece a imensa literatura acadêmica que derrubou o mito de que o salário mínimo atrapalha a criação de empregos. Esses livros e artigos estão lá, desesperados por não serem lidos, descartados na confusão mental zumbi de quem despreza a ciência, o conhecimento, seus avanços.

A solução? Não é fácil. Mas, sem qualquer dúvida, passa pelo abandono do fiscalismo, algo que os países desenvolvidos já deixaram para trás. Com os juros reais em queda — e mais à frente com a reforma da Previdência —, o Brasil não enfrenta mais problemas de sustentabilidade da dívida e de solvência. Esse é o paradoxo do apocalipse zumbi. Porém, para chegar a essa conclusão, ou mesmo para apenas flertar com essa conclusão, é preciso abandonar as amarras do pensamento emperrado em rótulos, neoliberais ou desenvolvimentistas. Triste é constatar que, no apocalipse zumbi, quem não é recôncavo não pode ser reconvexo ou vice-versa. Melhor mesmo é ser um preto norte-americano forte, com brinco de ouro na orelha...

Observação: Como deve ter ficado claro aos fãs de Caetano Veloso, este texto faz referência à música “Reconvexo”.

Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics