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Época Mundo 1126

A rasgada emblemática de Nancy Pelosi

Em uma semana de derrotas para os democratas, a presidente da Câmara dos Estados Unidos fez história ao despedaçar o discurso de Donald Trump
Pelosi rasgou em três etapas as páginas do discurso de mais de uma hora de Trump. Foto: Jonathan Ernst / Reuters
Pelosi rasgou em três etapas as páginas do discurso de mais de uma hora de Trump. Foto: Jonathan Ernst / Reuters

“Membros do Congresso, o presidente dos Estados Unidos.” A apresentação seca feita pela presidente da Câmara, Nancy Pelosi, muito distante do tradicional “tenho o privilégio e a honrosa distinção de apresentar...”, já indicava que a noite mais imponente do ano na política americana seria animada. Pouco antes, Donald Trump havia esnobado a oponente democrata, deixando no ar a mão que ela havia estendido para cumprimentá-lo em sua chegada. Mas o auge ocorreria ao final do discurso de uma hora e dezoito minutos de Trump. Já nas palavras finais, Pelosi, semblante sereno, rasgou teatralmente as páginas do discurso do presidente — garantindo uma imagem que estampou as capas dos grandes jornais e um lugar nos mais de 100 anos de tradição do discurso anual sobre o Estado da União feito por todo presidente americano desde Woodrow Wilson, em 1913.

Num país ainda mais polarizado e dividido que o Brasil atual, a atitude de Pelosi, uma política experiente em sua segunda passagem no comando da Câmara, valeu por mil tuítes raivosos de Trump. Questionada por repórteres, ela afirmou que rasgar as páginas era a “coisa educada a fazer, considerando as alternativas”, concluindo que o texto era “um manifesto de inverdades”. Segundo aliados, a cena não foi planejada. O ato da parlamentar pela Califórnia, uma das mulheres mais poderosas da história da política americana, surpreendeu até mesmo pessoas próximas, habituadas a sua personalidade reservada e seu respeito pela liturgia do cargo.

“Durante todo o processo de impeachment na Câmara, Trump insultou a democrata pelas redes sociais — um dos ataques mais comuns era chamá-la de ‘Nancy louca’. A relação dela com Bush era bem mais amistosa”

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Foi, de certa forma, o desfecho de um duelo que se prepara há tempos. Durante os cinco meses em que Pelosi comandou o processo de impeachment na Câmara, Trump a insultou de forma inclemente — “Nancy louca” talvez tenha sido o ataque mais comum. Ao contrário do atual ocupante da Casa Branca, um neófito na política, Pelosi está há um longo tempo na estrada.

Nascida em Maryland, Costa Leste dos Estados Unidos, mudou-se aos 21 anos para o outro lado do país, na Califórnia, onde começou a militância, nos anos 1970. Ela está na Câmara desde 1987, quando concorreu pela primeira vez e nunca mais perdeu. Já foi reeleita 16 vezes — os EUA realizam eleições legislativas a cada dois anos.

Vinte anos depois de chegar a Washington, Pelosi tornou-se a primeira mulher a comandar a Câmara americana, em meados dos anos 2000, e também sob a Presidência de um republicano, George W. Bush. Apesar dos discursos sobre o “total fracasso” do governo que fazia então, ela admitiu, já na dura convivência com Trump, que sentia saudades daqueles tempos. “Era possível trabalhar em conjunto”, disse, em 2018. “Eu tinha respeito por ele e pelo cargo que ele ocupava, enquanto ele respeitava o Congresso e suas responsabilidades.” Como se viu na noite de terça-feira passada, os tempos são outros.

A contagem dos votos nas primárias de Iowa terminou num fiasco para os democratas, dando munição a Trump. Foto: Spencer Platt / Getty Images / AFP
A contagem dos votos nas primárias de Iowa terminou num fiasco para os democratas, dando munição a Trump. Foto: Spencer Platt / Getty Images / AFP

Pelosi comanda a Câmara desde que os democratas retomaram a maioria, em 2018, e a relação com o presidnete nunca foi harmoniosa. O desprezo de Trump por Pelosi cresceu à medida que o impeachment avançava, no ano passado. A democrata não foi uma entusiasta de primeira hora da abertura de um processo contra o presidente, e relutava em levar a empreitada adiante. Sempre defendeu que só o faria se houvesse “um caso extremamente forte” contra Trump. As acusações de um conluio entre o republicano e os russos para influenciar as eleições de 2016 não pareciam fortes o suficiente. Mas as revelações de que o presidente havia pressionado a Ucrânia a “achar sujeiras” contra Hunter Biden, filho do ex-vice-presidente e seu possível rival nas eleições deste ano Joe Biden, mudaram suas convicções. Sob seu comando, a Câmara aprovou o impeachment de Trump no final do ano passado e enviou o caso ao Senado.

Mas a cena magistral de Pelosi no Congresso foi um alento fugaz para os democratas em uma semana de resto gloriosa para Trump. Os senadores enterraram no dia seguinte o impeachment e absolveram o presidente. Em Iowa, na largada para a definição de quem será o candidato democrata neste ano, um fiasco na contagem dos votos montou o palco perfeito para o presidente sapatear sobre os adversários.

Apesar de tudo, Pelosi se manteve confiante em entrevistas recentes: “Vamos ser otimistas sobre o futuro, um futuro em que não tenhamos Donald Trump na Casa Branca. De um jeito ou de outro”.