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Época Mundo 1123

A vida que ele levou: Roger Scruton (1944-2020)

Expoente conservador quando a esquerda era preponderante, o filósofo inglês jamais cedeu à retórica vulgar de agora
­ Foto: Eamonn McCabe / Popperfoto / Getty Images
­ Foto: Eamonn McCabe / Popperfoto / Getty Images

Foi só em abril de 1984, quando ele já visitava círculos secretos de oposição ao comunismo no Leste Europeu havia cinco anos, que a polícia política da então Tchecoslováquia abriu um arquivo com seu nome: Roger Scruton. Meses depois, o agente do serviço de espionagem tcheco em Londres recebeu ordens para investigá-lo na instituição em que lecionava, o Birkbeck College. No ano seguinte, em uma nova visita ao país comunista, o filósofo inglês acabou detido na cidade de Brno. Foi expulso do país e proibido de retornar. Uma amiga dissidente recordaria o momento em que ele atravessou, a pé, a fronteira entre a Tchecoslováquia e a Áustria: “Havia um amplo espaço vazio entre os dois postos de fronteira, nenhum outro ser humano à vista afora um soldado, e nesse espaço vazio Roger Scruton marchava com sua pequena mala de mão”. A caminhada solitária do filósofo que jamais abdicou da liberdade de pensar contra a corrente chegou ao fim no último dia 12, quando Roger Scruton morreu, vítima de câncer. Autor de cinco dezenas de livros — parte deles lançada no Brasil, principalmente pelas editoras É Realizações e Record — sobre temas tão diversos quanto a ideia de direitos animais (a que ele se opunha) e a ópera de Wagner (que ele amava), foi um expoente heroico do conservadorismo em uma era na qual o pensamento de esquerda preponderava nas universidades e meios intelectuais. Scruton foi um polemista feroz, tanto mais temível porque lia com cuidado a obra dos pensadores que atacava, mas mesmo nas provocações mais ligeiras e nas tiradas mais cáusticas jamais fez concessões à retórica vulgar que vem ditando o tom da guerra cultural.

Eurocético assumido, Roger Scruton foi, acima de tudo, um inglês cioso de sua cultura e de sua história. O edifício da sociedade conservadora descrito por ele deita suas fundações na nacionalidade, no pertencimento a um lugar específico, à comunidade na qual se firmam os valores cooperativos e as responsabilidades cívicas. É nesta unidade política básica que o indivíduo romperia seu isolamento egoísta para se integrar a uma primeira pessoa do plural, um “nós” orgulhoso e solidário. Scruton rejeitava as escolas de pensamento político que buscam substituir esses vínculos básicos por projetos abstratos como a igualdade global ou a sociedade sem classes. Também desconfiava de instituições supranacionais como a União Europeia, que retirariam o poder decisório do cidadão comum para entregá-lo a distantes elites burocráticas.

O tumulto estudantil que Scruton viu nas ruas de Paris em 1968 foi, segundo seu próprio testemunho, decisivo para sua conversão ao conservadorismo. Foto: AFP / Getty Images
O tumulto estudantil que Scruton viu nas ruas de Paris em 1968 foi, segundo seu próprio testemunho, decisivo para sua conversão ao conservadorismo. Foto: AFP / Getty Images

Em algumas passagens menos matizadas da obra de Scruton, o leitor quase sai com a impressão de que o moderno Estado do Bem-Estar Social ou a União Europeia seriam monstruosidades da mesma ordem que o totalitarismo comunista que o filósofo viu de perto nos anos em que dava aulas para círculos dissidentes na Hungria, na Polônia e na Tchecoslováquia. Mas, em suas linhas de força mais constantes, seu pensamento era demasiado rico para ser enquadrado em categorias vulgares ou em memes de rede social. Afirmava que a fé cristã era parte inalienável da identidade da Europa e, por extensão, da Civilização Ocidental, mas também defendia com eloquência o Estado secular — crítico da sharia que vigora em muitos países de maioria muçulmana, Scruton seria previsível e equivocadamente chamado de “islamofóbico”. Apoiou a renovação econômica promovida pelo governo liberal de Margaret Thatcher, mas era reticente com a ênfase exclusiva dos thatcheristas no livre mercado, em detrimento das “raízes mais profundas do conservadorismo na teoria e na prática da sociedade civil” (palavras de Como ser um conservador ).

“O conservadorismo é a voz das pessoas que encontram suas necessidades sociais e aspirações num ambiente familiar e amado, um lugar que para elas se apresenta como lar, que elas se esforçam por embelezar e melhorar, mesmo que por meio de pequenos ajustes e esforços da parte de voluntários”, define Scruton em Filosofia verde , seu esforço para equacionar os problemas ambientais de uma perspectiva conservadora. Essa imagem idílica de pessoas comuns levando uma simples e orgulhosa vida familiar — organizada em torno de casais heterossexuais, pode-se supor — sobre um torrão comum trai uma certa nostalgia da paisagem campestre da Inglaterra. Parece apropriada não a Londres ou Paris, mas à cidadezinha de Malmesbury, onde Scruton viveu seus últimos anos, em uma fazenda, ao lado da segunda mulher e de dois filhos. A tranquila exortação a valores ancestrais que ele temia estarem se perdendo na modernidade encontrava sua necessária contrapartida no combate às forças que desejariam cortar, às vezes violentamente, os laços que unem as pessoas a sua família, a sua fé, a sua terra.

“Bolsonaro lamentou a morte do filósofo. É de se perguntar se alguma vez leu a serena defesa da lei secular que Scruton faz em ‘Como Ser um Conservador’: ‘Há alguém mais importante que a maioria, especificamente, o indivíduo que dela discorda’”

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Scruton foi, ao longo de sua trajetória intelectual, forjado no combate. Seu pai, professor de escola primária, era um militante do Partido Trabalhista que orientava sua visão de mundo pela luta de classes. Tinha um profundo ressentimento contra intelectuais, e deixou de falar com o filho quando este ingressou na Universidade de Cambridge. Scruton estava em Paris em maio de 1968, e o tumulto que viu nas ruas foi, segundo seu próprio testemunho, decisivo para sua conversão ao conservadorismo. Desprezou os jovens estudantes que viravam carros e quebravam vitrines: todos membros de uma classe média mimada (curiosamente, uma avaliação bem similar à de um reputado historiador esquerdista, Tony Judt, outro inglês que se perdeu em meio à bagunça no Quartier Latin). A face mais demolidora de Scruton encontra expressão em Pensadores da nova esquerda , de 1985, e Tolos, fraudes e militantes , de 2015, coletâneas de ensaios às vezes vitriólicos mas sempre rigorosos sobre a obra de vários gurus da esquerda, de Jean-Paul Sartre a Slavoj Zizek.

O autor de As vantagens do pessimismo enfrentou com irônica galanteria a condição de relativo isolamento acadêmico que lhe foi imposta por causa de suas convicções conservadoras. Disse certa vez que o único outro conservador com que conviveu no Birkbeck College, onde lecionou por anos, era uma servente do refeitório. Como se tornou inevitável nas batalhas ideológicas contemporâneas, Scruton passou a ser visto não como um pensador a ser criticado e contestado, mas como um inimigo a ser desmoralizado e derrubado. No ano passado, a revista New Statesman — na qual Scruton manteve uma coluna sobre vinhos — publicou uma entrevista com o filósofo na qual certas declarações reproduzidas de forma truncada sugeriam posturas racistas e antissemitas. Depois de divulgada a gravação integral da entrevista, o editor pediu desculpas públicas.

Em seu último texto, uma revisão pessoal do ano de 2019 publicada na revista The Spectator , Scruton fala rapidamente sobre sua passagem pelo Brasil, em julho: neste “ponto mais distante a que chegou a Civilização Ocidental”, ele descobre que tem um fã-clube. Em um raro tuíte sobre matéria cultural, o presidente Jair Bolsonaro se juntou ao clube, lamentando a morte do filósofo. É de se perguntar se o político que em 2017 afirmava que em um país de maioria cristã a minoria “tem de se curvar” alguma vez leu a serena defesa da lei secular que Scruton faz em Como ser um conservador : “Há alguém mais importante do que a maioria, especificamente, o indivíduo que dela discorda”. Scruton foi definitivamente um conservador de outra cepa, um homem que, mesmo sob ataque, não cedia ao ressentimento. No texto da The Spectator , ele consegue extrair um saldo positivo do ano em que foi difamado e recebeu o diagnóstico de câncer: “Quando você chega perto da morte, começa a perceber o significado da vida, e a vida significa gratidão”.