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Época Mundo 1175

Musk × Bezos: a nova cara da corrida espacial americana

A disputa entre as duas maiores fortunas do mundo impulsiona a investida dos EUA rumo ao cosmos e pode levar o homem à Lua de novo depois de quase 50 anos
Em maio de 2019, Jeff Bezos, proprietário da Blue Origin, apresentou o protótipo do módulo de pouso lunar chamado Blue Moon, durante um evento em Washington. Foto: Mark Wilson / Getty Images
Em maio de 2019, Jeff Bezos, proprietário da Blue Origin, apresentou o protótipo do módulo de pouso lunar chamado Blue Moon, durante um evento em Washington. Foto: Mark Wilson / Getty Images

A plataforma de lançamento 39-A, em Cabo Canaveral, na Flórida, foi o local onde os sonhos da humanidade de explorar o espaço se tornaram realidade. A bordo do Saturn V, três astronautas americanos — Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins — decolaram do Kennedy Space Center, na manhã de 16 de julho de 1969, em direção à Lua. Os dois primeiros pisariam no satélite, mudando o rumo da história. Durante mais de quatro décadas, dezenas de outras missões partiram da estação que ficou marcada na exploração espacial. Em 2013, com o programa espacial americano naufragando, o local estava abandonado, e a Nasa ansiosa para vendê-lo. O comprador natural era Elon Musk, cofundador do PayPal, criador da Tesla e dono da SpaceX, que havia se tornado a primeira empresa privada de foguetes a entrar em órbita com uma carga útil. Surpreendentemente, um concorrente surgiu: Jeff Bezos, da Amazon, que, por meio da Blue Origin, estava construindo um veículo de lançamento reutilizável para levar turistas ao espaço. Musk venceu a licitação, mas a disputa marcou a nova polarização na corrida espacial que por décadas presenciou o embate entre americanos e russos. A sanha de chegar a novos mundos não está mais nas mãos de governos, e sim de empresas privadas.

Bezos e Musk criaram dois dos negócios mais valiosos do mundo, que os tornaram os homens mais ricos do planeta. Acumulam uma fortuna estimada, em 2020, em US$ 354,4 bilhões. O fundador da Amazon ocupava o pódio do ranking de bilionários da Bloomberg desde 2017 até o início do mês, quando foi desbancado por Musk, cujo patrimônio atingiu US$ 188 bilhões em razão da valorização súbita de 5% de um de seus fundos.

No ano passado, a Nasa anunciou a contratação das empresas dos dois multibilionários para executar os projetos de espaçonaves para levar os astronautas de volta à superfície da Lua. Além deles, uma terceira companhia, a Dynetics, de Huntsville, entrou no negócio que vai pagar quase US$ 1 bilhão para o desenvolvimento do design inicial. O Artemis, programa de pouso na Lua da Nasa, enfrenta um futuro incerto, pois questões técnicas, orçamentárias e políticas — bem como atrasos adicionais resultantes da pandemia do coronavírus — colocam em risco seu progresso, mas ainda fascina o imaginário popular. Apenas os americanos colocaram os pés na Lua, e a última visita foi em 1972.

“Em contrapartida aos investimentos em programas espaciais, as empresas de Musk e Bezos ganharam incentivos fiscais e contratos com a Nasa para a produção de equipamentos”

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Mas o que leva esses dois empresários a gastar parte de suas fortunas no projeto vai além do gosto quase excêntrico pelo Universo. Ambos buscam o novo salto tecnológico provocado pela pesquisa e pelo desenvolvimento de aeronaves, módulos e outros componentes usados na exploração espacial. Há 40 anos, a disputa entre americanos e russos proporcionou invenções hoje usadas no dia a dia. De câmeras de celulares a componentes mais resistentes para pneus, de tênis de corrida a filtros d’água. Pisar na Lua ajudou a humanidade a avançar.

Mas nem tudo é inovação ou aposta. Os dois homens mais ricos do mundo, que comprometeram bilhões de dólares de seu próprio dinheiro nessa corrida espacial privada, agora podem receber um incentivo extra do governo dos Estados Unidos: uma redução de impostos — medida originalmente destinada a ajudar as comunidades pobres. As instalações de suas empresas foram incluídas entre os milhares de tratados nos EUA designados como Zonas de Oportunidades Qualificadas, parte do plano do ex-presidente Donald Trump de usar incentivos fiscais para atrair investimentos e empregos para bairros mais pobres.

Na época, a SpaceX de Musk estava construindo uma operação de lançamento ao longo da fronteira do Texas com o México. A Blue Origin de Bezos havia fechado um acordo para construir uma fábrica de motores de foguete de US$ 200 milhões em um parque de pesquisas no Alabama. As empresas já haviam se comprometido com a criação de empregos e garantido incentivos fiscais locais. A qualificação dos bilionários para o benefício federal permite que eles evitem impostos sobre ganhos de capital a partir do dinheiro que direcionam para operações nessas zonas. Esses investimentos poderão então crescer sem impostos e, se os bilionários mantiverem seus investimentos por uma década, qualquer valorização poderá ser protegida dos impostos federais sobre ganhos de capital para sempre.

Isso seria uma oportunidade valiosa para Bezos e Musk.

Suas manobras espaciais podem fracassar, é claro. Mas elas também podem gerar grandes lucros para a dupla, que já recebeu bilhões de dólares em contratos espaciais federais, entre eles um para a SpaceX de Musk entregar em novembro quatro astronautas à Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês).

Ainda não está claro se o sucessor do republicano Trump, Joe Biden, fará mudanças radicais nesse esquema de incentivos fiscais. Um de seus assessores econômicos mais próximos, Jared Bernstein, apoia o programa e é coautor do artigo de pesquisa no qual ele se baseia. Biden se comprometeu a continuar com as isenções, mas exige que os investidores mostrem que os projetos beneficiam de fato as comunidades. Entretanto, moradores das áreas, alguns dos quais vivem a poucas centenas de metros dos locais de lançamento de foguetes, temem que os líderes políticos possam sacrificar suas cidadezinhas ao apoiar os sonhos espaciais dos bilionários. “Esperávamos que ele ficasse sem dinheiro”, disse Cheryl Stevens, de 60 anos, residente de Boca Chica, no Texas, sobre Elon Musk. O bilionário comprou mais de 30 terrenos onde havia casas modestas para ampliar as operações locais da SpaceX, com incentivos fiscais de US$ 30 milhões do governo estadual.

Já Jeff Bezos anunciou que estabeleceria as operações da Blue Origin no Cummings Research Park, área onde ficam várias empresas da lista Fortune 500, startups de alta tecnologia e laboratórios universitários, em Huntsville, no Alabama. O parque de pesquisa, fundado pelo pioneiro espacial Wernher von Braun, fez sentido logístico para a Blue Origin: é perto do Centro Espacial Marshall, da Nasa, que ajudou Huntsville a ganhar o apelido de “Cidade Foguete”. A Blue Origin obteve do estado US$ 16 milhões em incentivos.

E quem vai ganhar a nova corrida espacial privada? O engenheiro espacial Lucas Fonseca, diretor do projeto Garatéa, voltado à divulgação científica, afirmou que o plano de Musk é mais complementar às necessidades dos programas espaciais de países que buscam a atividade — China, Índia e Rússia. “Historicamente, toda a conquista espacial foi feita por meio de encomendas tecnológicas, só que os governos ditavam que tecnologias deveriam ser usadas e como deveriam ser entregues”, disse Fonseca. “A diferença agora é que uma pessoa propôs seu próprio modelo de negócio, muito mais acessível, o que dá chance às agências espaciais de gastarem dinheiro com outras coisas.”

Segundo ele, as abordagens de Musk e Bezos são bem distintas. “No caso de Musk, tem esse ponto da iteração, da repetição, que ele vai fazendo e aperfeiçoando voo a voo, tanto que demorou anos para chegar a uma configuração final para o foguete Falcon 9 (batizado em homenagem à nave Millennium Falcon, de Han Solo, em “Guerra nas Estrelas”) . Já Bezos chegou a usar uma tartaruga, além da pena, como símbolo da Blue Origin, demonstrando uma trajetória mais lenta, mas linear, sempre em frente.”

Na plataforma 39-A, no Kennedy Space Center, na Flórida, a empresa de Musk lança o SpaceX Falcon, uma das apostas da Nasa para voltar à Lua. Em 1969, a Apollo 11 partiu de lá para levar os primeiros astronautas ao satélite. Foto: Jim Watson / AFP via Getty Images
Na plataforma 39-A, no Kennedy Space Center, na Flórida, a empresa de Musk lança o SpaceX Falcon, uma das apostas da Nasa para voltar à Lua. Em 1969, a Apollo 11 partiu de lá para levar os primeiros astronautas ao satélite. Foto: Jim Watson / AFP via Getty Images

A exploração do espaço profundo pode fornecer pistas sobre a vida em outros lugares e insights sobre como os humanos podem se adaptar a ambientes muito mais hostis. Aventurar-se mais no Sistema Solar impulsionaria tecnologias em áreas como comunicações a laser e proteção contra radiação.

Marte é uma prioridade para a Nasa e o objetivo central para Musk, que prevê lá uma cidade autossustentável. No final de 2020, China, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos tinham sondas rumo ao Planeta Vermelho. Além disso, no meio do caminho, a mineração de asteroides pode tornar a viagem espacial mais viável: a eventual água nos asteroides pode ajudar a produzir propelente ou ser usada para tratar o impacto da radiação na viagem.

Filosoficamente, Musk e Bezos divergem sobre os motivos que levam à necessidade de explorar o espaço. A visão do dono da Tesla é “mais apocalíptica”, pensando na necessidade de a humanidade reaprender a viver em outro ambiente caso a Terra venha a colapsar. Bezos já pensa em transformar onde vivemos numa espécie de santuário, defendendo que devemos tirar as atividades prejudiciais daqui e levá-las para outro lugar.

Como costuma ser o caso com a progressão da inovação, os maiores avanços tecnológicos ocorrem quando é alcançada uma simbiose que combina os recursos de um governo visionário e empreendedores que assumem riscos, cada um estimulando o outro para a frente. A Nasa aposta nos dois e na concorrência entre as duas maiores fortunas do planeta para voltar a olhar o mundo de cima.

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