Época cultura

Novo livro de Paulo Henrique Brittos une linguagem coloquial e versos tradicionais ao falar de perdas

Em 'Nenhum Mistério' poeta e tradutor volta aos versos após seis anos
O poeta e tradutor Paulo Henriques Britto Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo
O poeta e tradutor Paulo Henriques Britto Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo

O poeta Paulo Henriques Britto não espera que a literatura dê sentido a sua vida. Ainda adolescente, Britto se impressionou com uma passagem dos Diários em que Franz Kafka reclamava que seu emprego era “intolerável” porque contradizia seu “único desejo” e “única vocação”: a literatura. “Como eu nada sou senão literatura, que não posso nem quero ser outra coisa, meu emprego nunca será fonte de exaltação, mas poderá, pelo contrário, desequilibrar-me completamente”, anotou Kafka em 21 de agosto de 1913. “Eu li isso e pensei: ‘Pô, eu nunca vou ser um escritor de verdade, que nem o Kafka’. Eu nunca seria capaz de dizer algo assim. Para mim, há muitas outras coisas importantes além da literatura ou até mais importantes que a literatura”, disse Britto a ÉPOCA. Além de ser poeta, ele escreve prosa, dá aulas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e traduz autores de língua inglesa. “A poesia é importantíssima para mim, mas não vejo como ela pode dar sentido. Todas as soluções que ela oferece são precárias, pontuais, imanentes”, disse. “Aliás, esse é um dos temas de meu último livro.”

ENTREVISTA: Laura Carvalho: "As contas dos economistas devem ser orientadas por escolhas democráticas"

LEIA: Como encontrar um primo russo ajudou a poeta inglesa Sarah Rebecca Kersley a se reconciliar com sua origem

O mais recente livro de Britto, Nenhum mistério (Companhia das Letras, 72 páginas, R$ 44,90), aportou nas livrarias há poucas semanas cheio de poemas sobre perda, ausência de sentido e fracassos honrosos. Princípio? Tudo é contingente./Fim? Toda luz termina em breu./Sentido? Quem quiser que invente , provoca um dos primeiros poemas do livro. Nenhum mistério é o sétimo livro de poesia de Britto, que também já publicou um livro de contos, Paraísos artificiais (Companhia das Letras), no qual os personagens se veem metidos em situações kafkianas. A linguagem de Britto é prosaica e cerebral, coloquial e avessa ao palavreado rebuscado, mas convive bem com formas poéticas elevadas como sonetos, redondilhas e versos metrificados. Britto quase não compõe verso livre, embora desenvolva uma pesquisa acadêmica sobre como os modernistas brasileiros se aproveitaram da aposentadoria das formas fixas. Às vezes, Britto também trai a métrica. Ele intervém de propósito nas formas fixas: deixa rimas incompletas, coloca as sílabas tônicas nos lugares errados e escreve versos mais longos ou curtos do que prevê a métrica tradicional. “Eu sou apaixonado pelo verso livre, mas o que me sai com facilidade é o verso metrificado”, disse. “Para mim, a forma fixa não é uma prisão. A forma fixa me liberta. Quando me vejo diante da perspectiva de compor um poema em versos livres, fico paralisado. A forma fixa me propõe soluções.”

O novo livro de Paulo Henriques Britto, "Nenhum Mistério" Foto: Divulgação
O novo livro de Paulo Henriques Britto, "Nenhum Mistério" Foto: Divulgação

A poesia de Britto é marcada por um diálogo profícuo entre forma e conteúdo: a busca por soluções obedientes à métrica tradicional se contrapõe às ansiedades de um eu lírico preocupado com o peso de suas escolhas e daquilo que ele não escolhe, como se sua liberdade esbarrasse em formas fixas. Todas as soluções são boas,/menos a que você escolher. Escolha, sim. (Mesmo que doa,/dá uma espécie de prazer.) , diz um dos poemas do livro anterior de Britto, Formas do nada (Companhia das Letras). Nenhum mistério retoma a meditação sobre a liberdade: A posição de tudo a seu redor/(a pele de uma bolha):/resultado final (desolador)/de mil acasos, mil escolhas,/todas suas . “Essa temática, isso de você ser responsável por suas escolhas e por dar forma a sua vida, é uma coisa geracional”, afirmou Britto. “Quando eu tinha 16, 17 anos, o grande barato era ler os existencialistas. Li muito (Jean-Paul) Sartre (filósofo francês) nessa época. Li a ficção e o teatro dele, e também alguns ensaios filosóficos um pouco mais acessíveis, como O existencialismo é um humanismo .” Diferentemente de muitos de seus companheiros de geração, Britto não buscou refúgio nas ideologias políticas — ou em Deus. “Eu acredito numa porrada de coisas — nas palavras, numa série de possibilidades da vida —, mas nunca me interessei pela transcendência. Isso sempre foi um não problema para mim.”

Britto nasceu no Rio de Janeiro, em 1951. Na escola, aprendeu versinhos parnasianos, patrióticos e moralistas. “Eu criei tanta repulsa aos parnasianos que só fui ler Olavo Bilac a sério depois dos 30 anos. Sempre me incomodei com a poesia de voz embargada”, contou. Aos 11 anos, foi para os Estados Unidos, onde morou por mais de dois anos. Lá, ele se encantou por William Shakespeare, Emily Dickinson e Walt Whitman e aprendeu inglês, língua que nunca abandonou. Os livros de Britto costumam trazer poemas compostos em inglês ou traduzidos a partir de uma versão em português. Britto foi novamente aos EUA aos 20 anos para estudar cinema, mas voltou ao Brasil um ano e meio depois. O que ele queria mesmo era ser músico — a poesia foi uma solução possível. Sempre aspirar à condição da música./Não só na arte: em tudo , prega um dos poemas de Nenhum mistério . De volta ao Brasil, estudou linguística na PUC, onde passou a lecionar. Foi nessa época também que começou a traduzir escritores de língua inglesa.

A tradutora e editora Heloisa Jahn lembra que cuidou da edição de um livro traduzido por Britto, em 1985, na editora Brasiliense — ela não se recorda do título ou do autor. O revisor havia sugerido diversas alterações que, na opinião de Britto, desfiguravam sua tradução. Ele ligou para reclamar e quem atendeu foi Jahn. “Eu ainda não havia tido tempo nem mesmo de saber do que se tratava. Pedi paciência, li a tradução e concordei cem por cento com a braveza do Paulo”, contou Jahn. “Liguei para ele e garanti que o texto seria restaurado ao que era antes. Daí em diante, trabalhamos juntos muitas vezes. Foi assim também que começou nossa amizade.” Jahn editou a maioria dos livros de Britto e outros tantos que ele traduziu. “A poesia do Paulo é única em sua beleza. Em sua melancolia, inteligência e capacidade de armar um laço em que o leitor sempre cai”, elogiou. “E o que faz dele um tradutor excepcional é a capacidade de criar um caminho de leitura.” Britto já traduziu mais de uma centena de livros do inglês, de autores como William Faulkner, Elizabeth Bishop, Wallace Stevens e John Updike.

“Eu costumo dizer para meus alunos que a melhor maneira de praticar a escrita é traduzir literatura”, disse Britto. “Traduzindo, você mergulha fundo na leitura e percebe como o autor constrói os personagens. Foi isso que me levou a nunca abrir mão totalmente da ficção, apesar de achar que eu não levo jeito.” Britto está trabalhando num livro de contos que talvez venha a lume no ano que vem. Na PUC, além de aulas de tradução, ele oferece oficinas de poesia. Os alunos gostam dele, tanto que criaram o Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, cuja décima edição acontecerá em novembro. Um dos vencedores do prêmio foi o romancista Carlos Eduardo Pereira, autor de Enquanto os dentes (Todavia) e ex-aluno de Britto. “Nas aulas, o Paulo deixa claro que não espera que saiam poetas dali, mas que a gente aprenda a ler poesia. A cada aula, os alunos são convocados a escrever uma estrofe ou um punhado de versos, não precisa ser um poema, mas ele faz questão de que comentemos nossa produção”, contou Pereira. “Eu admiro muito o trabalho do Paulo. Ele é zero pompa, super pé no chão.”

A americana Idra Novey começou uma amizade virtual com o poeta quando traduziu seus versos para o inglês. Ela, que também é poeta e ficcionista, verteu A paixão segundo G.H. , de Clarice Lispector, para o inglês, mas, anos antes, havia traduzido uma antologia de poemas de Britto. The clean shirt of it (referência a um verso dele: E visto o dia, uma camisa limpa ) foi publicado em 2007 pela prestigiosa BOA Editions. “Britto cuida de cada imagem, de cada verso, de cada referência”, disse Novey. “Quando fomos ao Brasil, meu marido e eu fomos jantar com ele e sua mulher, Santuza (Cambraia Neves) . Ela era antropóloga, estudava música popular brasileira e nos contou sobre suas pesquisas. A amizade deles realmente enriqueceu nossas vidas.” Santuza teve um acidente vascular cerebral na noite do lançamento de Formas do nada , o antecessor de Mistério nenhum , e morreu dois dias depois, em 4 de abril de 2012. “A perda é o tema desse livro novo. Certamente tem a ver com essa experiência”, disse Britto. Ele tirou o título do novo livro de um poema de Elizabeth Bishop, que ele próprio traduziu: A arte de perder não é mistério nenhum .

LEIA: Quarenta e seis anos depois, a vietnamita que comoveu o mundo quer que sua foto contribua para a paz

COLUNA: Um narrador em defesa da transparência

poemas
Poemas de Paulo Henriques Britto
Caderno, X
A segunda é mais do mesmo.
A terceira, malograda,
faz a pessoa pensar,
questionar metas e métodos,
antes de embarcar na quarta,
que dá num naufrágio épico.
A essa altura, desistir
não é mais uma alternativa:
o fracasso se tornou
a própria textura da vida,
e a hipótese do acerto
não entra sequer no cálculo.
Assistir à própria queda
agora é todo o espetáculo.
Caderno, XIV
Isto, também, será lembrado um dia,
Porém não tal qual é sentido agora.
Não que as lembranças sejam distorcidas
De propósito; é só porque a memória,
entre o vivido e o lembrado, interpõe
como que um filtro, com pequenas falhas
ou até mesmo substituições —
nem tanto por mentiras deslavadas,
mas por versões plausíveis do ocorrido.
São mudanças sutis, que se desculpam,
como perdas num texto traduzido,
e não trapaças. Pois a vida é tua,
e se nem sempre é possível amá-la,
tens o direito (ao menos) de editá-la.
poemas
Poemas de Paulo Henriques Britto
Caderno, X
A segunda é mais do mesmo.
A terceira, malograda,
faz a pessoa pensar,
questionar metas e métodos,
antes de embarcar na quarta,
que dá num naufrágio épico.
A essa altura, desistir
não é mais uma alternativa:
o fracasso se tornou
a própria textura da vida,
e a hipótese do acerto
não entra sequer no cálculo.
Assistir à própria queda
agora é todo o espetáculo.
Caderno, XIV
Isto, também, será lembrado um dia,
Porém não tal qual é sentido agora.
Não que as lembranças sejam distorcidas
De propósito; é só porque a memória,
entre o vivido e o lembrado, interpõe
como que um filtro, com pequenas falhas
ou até mesmo substituições —
nem tanto por mentiras deslavadas,
mas por versões plausíveis do ocorrido.
São mudanças sutis, que se desculpam,
como perdas num texto traduzido,
e não trapaças. Pois a vida é tua,
e se nem sempre é possível amá-la,
tens o direito (ao menos) de editá-la.