Época Bolsonaro

O boletim de Bolsonaro nas escolas militares que frequentou nos anos 70 e 80

Os principais elogios ao aluno não diziam respeito a suas notas nas disciplinas cursadas, mas a seu desempenho como atleta
Boletim do presidente eleito, Jair Bolsonaro Foto: Vinicius Jorge Sassine - Redaç / Agência O Globo
Boletim do presidente eleito, Jair Bolsonaro Foto: Vinicius Jorge Sassine - Redaç / Agência O Globo

Na sessão da Câmara que homenageou os 30 anos da Constituição brasileira, no início do mês, durante sua primeira ida a Brasília como presidente eleito, Jair Bolsonaro destilou inesperado conhecimento: “Na topografia, existem três nortes, o da quadrícula, o verdadeiro e o magnético”, disse o capitão da reserva do Exército. “Na democracia só há um norte, é o da nossa Constituição”, emendou.

Bolsonaro, ao discursar de improviso, buscou na memória as aulas que teve ao longo de sua formação militar. Segundo os manuais de topografia, o norte verdadeiro é definido pelo eixo de rotação da Terra. É o polo geográfico. O norte magnético é definido pelo polo magnético, que não é coincidente com o polo geográfico, sendo obtido por meio de bússolas. O norte da quadrícula é definido pelo norte da carta — ou seja, pela direção norte do quadriculado de coordenadas planas do mapa.

O desempenho de Bolsonaro em topografia, quando cursava o segundo ano na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), pode ser considerado bom: o então cadete cravou uma nota 7,8 nos exames finais. Saiu-se melhor do que em física 2 (6,4) e psicologia (6,3), mas pior do que em estatística (8,8) e mecânica (8,5).

A biografia que Bolsonaro torna pública, tanto em seu site oficial quanto na página da Câmara, não detalha seu desempenho ao longo de sua formação como capitão. Bolsonaro, afinal, foi um bom aluno nos cursos militares que fez? Se depender do Exército, essa é uma pergunta sem resposta.

A formação militar do novo presidente da República, com alguns detalhes sobre seu desempenho como aluno, está descrita em relatórios anexados a um processo no Superior Tribunal Militar (STM) no qual Bolsonaro foi julgado no fim da década de 80. Somente a consulta a esse processo permite saber minimamente que aluno Bolsonaro foi na Aman e nos cursos militares subsequentes. O segredo se deve ao fato de que o Comando do Exército decidiu manter sob sigilo o histórico escolar do presidente eleito.

Desde o fim de julho, quando Bolsonaro virou protagonista da disputa presidencial, a reportagem tenta obter o histórico escolar completo relativo ao período em que ele esteve na Aman, em Resende, Rio de Janeiro, entre 1974 e 1977. A via usada para isso foi a Lei de Acesso à Informação, com um pedido dirigido ao Comando do Exército. O pedido é simples. A reportagem queria saber: 1) todas as notas por disciplina; 2) as notas obtidas nas provas feitas; e 3) a classificação de desempenho na academia ano a ano do presidente eleito.

Os militares se negaram a fornecer a informação, em todas as etapas em que cabiam recursos para obter os dados. O Exército não apenas se recusou a fornecer as informações sobre o histórico escolar de Bolsonaro. A Força também ignorou recomendação do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) para que o próprio presidente fosse consultado sobre a disposição em autorizar a entrega dos dados. A última negativa, manifestada à CGU, ocorreu em 25 de outubro, três dias antes de as urnas conferirem a Bolsonaro o mandato de presidente da República.

O subchefe do gabinete do comandante do Exército, coronel Oswaldo Luiz Sant’Anna, afirmou que as informações são “pessoais, de acesso restrito, cujo acesso por terceiros depende de consentimento expresso da pessoa a que se refere”. A CGU, ao analisar um recurso, interpretou que de fato as informações poderiam ser compreendidas como de caráter pessoal, mas que, por se tratar de um candidato à Presidência, “deveria incidir um maior grau de transparência”.

A CGU, então, recomendou ao Comando do Exército que consultasse Bolsonaro para verificar se ele autorizava o fornecimento de seu histórico escolar. Em 25 de outubro, o Comando respondeu: “A solicitação do consentimento do cidadão Jair Messias Bolsonaro para acesso de terceiros às suas informações pessoais sensíveis não deve ser realizada por este Comando por se tratar de um pedido de autorização de cunho pessoal e não funcional”.

A CGU, ministério responsável por fazer valer a Lei de Acesso à Informação, citou, então, um princípio internacional de transparência, que diz que prevalece o direito de acesso à informação pública quando a pessoa tem função pública e quando as informações solicitadas guardam relação com sua notoriedade. Bolsonaro foi eleito presidente com 57,7 milhões de votos. Ganhou notoriedade a partir de sua polêmica atuação no Exército há três décadas, que lhe valeu posteriormente imediato ingresso numa carreira política.

O caso de Bolsonaro se encaixa nos dois critérios descritos pela CGU. Mesmo assim, ao analisar um recurso, o Exército decidiu negar o acesso às informações. Citou as negativas que precederam o pedido pelo histórico escolar do presidente eleito. A reportagem ingressou com um último recurso, junto ao Conselho de Ministros que delibera uma vez por mês sobre fornecimento de dados via Lei de Acesso à Informação. Ainda não houve deliberação sobre o pedido, que poderá ser decidido apenas depois da posse de Bolsonaro como presidente.

Se o Exército se nega a fornecer o histórico escolar do capitão da reserva que virou presidente da República, o caminho que permite ter uma ideia básica sobre o aluno Bolsonaro é o do processo a que ele respondeu no STM. No fim da década de 80, o hoje presidente eleito passou a ter projeção nacional quando começou a contestar o próprio Exército. Os atos de rebeldia se tornaram cada vez mais ruidosos. Em 1987, Bolsonaro escreveu um artigo publicado pela revista Veja em que questionava os baixos salários pagos à tropa.

Não foi só. Bolsonaro assumiu também para si um cabo de guerra que tinha, na outra ponta, o comando da Força. Ele foi citado posteriormente pela mesma revista como participante de um plano para “explodir” unidades militares. Isso motivou a abertura de uma sindicância para investigá-lo. O Conselho de Justificação do Exército enxergou culpa nos atos de Bolsonaro e listou também como motivo para condenação uma incursão do capitão numa área de garimpo. O processo, então, foi remetido ao STM.

Em 1988, a maioria dos ministros votou pela inocência de Bolsonaro por achar que havia insuficiência de provas de participação do capitão no plano de explosão das unidades militares e decidiu in dubio pro reo — expressão latina para o princípio jurídico da presunção da inocência: em caso de dúvida, o réu deve ser favorecido. Toda essa movimentação teve ampla cobertura de imprensa, o que deu visibilidade ao jovem militar, então com 33 anos.

No mesmo ano da absolvição, Bolsonaro transferiu-se para a reserva e foi eleito vereador no Rio de Janeiro. Começava ali a irreversível incursão na política, com sete ininterruptos mandatos de deputado federal pelo Rio até a ascensão, neste ano, à Presidência da República.

Entre os documentos classificados como “reservados” e anexados ao processo no STM estão relatórios das escolas militares por onde o presidente eleito passou nos anos 70 e 80. O tribunal deixou de classificar como sigilosos os três volumes do processo — e suas 1.538 páginas. Uma cópia dos autos levanta um pouco o véu sobre a trajetória de Bolsonaro como aluno.

Os primeiros registros dizem respeito à passagem de Bolsonaro pela Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas, São Paulo. O aluno de “cor branca”, “cabelos Cas Med Lis” (cabelos castanhos lisos), “barba e bigodes raspados” e “olhos azuis” ingressou na escola em 1973. As piores notas nos exames finais foram em história (51) e em português (53). Os melhores desempenhos foram em desenho (78) e química (75).

Em 1977, Jair Bolsonaro participa de um treinamento de pentatlo na Academia das Agulhas Negras (Aman), em Resende Foto: Reprodução
Em 1977, Jair Bolsonaro participa de um treinamento de pentatlo na Academia das Agulhas Negras (Aman), em Resende Foto: Reprodução

Os primeiros registros da Aman, referentes ao segundo semestre de 1974, mostram Bolsonaro com uma boa classificação na Turma Tiradentes: ele se classificou em 49º, num universo de 402 alunos. As notas naquele momento foram 7,3 em física 1, 7,7 em filosofia, 9,3 em geometria descritiva, 8,7 em matemática e 6,6 em química 1.

No ano seguinte, a classificação do cadete piorou um pouco: 59º. Foi naquele segundo ano, em 1975, que Bolsonaro tirou um 7,8 no exame final de topografia.

O documento do Exército faz o seguinte registro, a cargo do comandante da Aman: “Louvo-o pelo esforço, tenacidade, zelo e dedicação revelados nos treinamentos e na apresentação do Corpo de Cadetes durante o desfile militar de 7 Set em comemoração ao Dia da Pátria, caracterizados pelo garbo, precisão de movimentos e marcialidade, honrando as tradições mais caras da Academia”.

Os principais elogios ao aluno Bolsonaro não diziam respeito a suas notas nas disciplinas cursadas, mas a seu desempenho como atleta. Ele fez parte da equipe de pentatlo militar e se destacou por isso. A ficha de 1976 anota que o aluno “evidenciou sua qualidade de atleta e desportista, competindo com atletas mais experimentados, conseguiu o 3º lugar individual, na difícil modalidade que é o pentatlo militar”.

No último ano da Aman, em 1977, Bolsonaro obteve um 5,3 em história militar, um 6,7 em administração, 7 em Direito, 7 em geografia e 7,3 em psicologia 3. Ao fim do curso, foi classificado em 19º entre 68 da turma de artilharia.

A vida de Bolsonaro na Aman transcorreu sem muitos sobressaltos. Ele melhorou seu desempenho na Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx) e no curso de mergulhador no Corpo de Bombeiros do Rio. Na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), em 1987, véspera do início de sua longa carreira política, o desempenho de Bolsonaro caiu consideravelmente.

A ficha da EsAO, referente ao segundo semestre de 1987, registra: Bolsonaro ganhou um “muito bom” somente em “resistência física”. Foi considerado “regular” em “aptidão para trabalho em grupo” e também em “espírito militar”. Por fim, foi classificado em 28º, numa turma de 49 alunos.

Foi naquele ano que o rebelde Bolsonaro passou a ser investigado internamente, resultando inclusive no processo no STM. A peça de acusação registra um “conceito desabonador” ao militar por parte do comandante do grupo paraquedista, no segundo semestre de 1983: “Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira”.

A punição pretendida no processo no STM não foi adiante. Em 16 de junho de 1988, a maioria dos ministros decidiu absolver Bolsonaro das acusações feitas. Naquele mesmo ano, o jovem militar foi eleito vereador do Rio com 11.062 votos. Dois anos depois, ganhou o primeiro mandato de deputado federal. O resto é história.