Época vida brasileira

O Natal da discórdia

Especialistas dão dicas para evitar que discussões políticas estraguem as festas de fim de ano
Como evitar que a política azede o peru Foto: Catarina Bessell
Como evitar que a política azede o peru Foto: Catarina Bessell

Os parentes do oceanógrafo Bruno Monti formam uma típica família mineira, daquelas imensas, com mais de 14 tios e tias, que se reúne para almoços dominicais durante comemorações de aniversário e datas religiosas. Católicos na maioria, os Montis moram em uma cidade na Serra da Mantiqueira, no sul do estado. Vez ou outra, brigam por motivos bobos, para logo retomar o diálogo. Esse era o padrão havia muito tempo — pelo menos até 2018. As eleições de outubro deste ano vão ficar marcadas na história da família. Pela primeira vez, os Montis brigaram tanto que não estão se falando mais. E a proximidade do Natal tem deixado a família apreensiva.

O entrevero começou seguindo um roteiro típico da era digital. Um comentário num grupo de WhatsApp escancarou as diferenças de opiniões. “Uma de minhas tias mais velhas foi quem puxou a confusão, já em janeiro”, lembrou Bruno Monti, ainda denunciando algum rancor na voz, meses depois do incidente. Reproduzindo algum texto que lera na internet, a tia afirmava que todos os profissionais formados em universidades públicas brasileiras sofreram doutrinação de esquerda.

Monti e as irmãs, que estudaram em universidades públicas, rebateram: “Olha, acho que doutrinação sofreu quem viveu quase 30 anos de ditadura militar, mas jura que aqueles tempos eram melhores”. Embalados pelo WhatsApp, não demorou muito para os Montis, que costumavam lidar com divergências políticas à moda mineira — de maneira equilibrada e conciliatória —, estarem divididos entre ferrenhos defensores da direita ou da esquerda. E, meses mais tarde, entre eleitores de Jair Bolsonaro (PSL) e de Fernando Haddad (PT).

No correr das discussões, as discordâncias políticas culminaram em ataques pessoais. Em junho, no almoço do feriado de Corpus Christi, o último em que se reuniram, a tia de Monti voltou à carga: “Disse que, por ter tantos amigos LGBT, eu provavelmente tinha virado gay também. E por isso votava no Haddad”, contou ele. Impropérios foram ditos de parte a parte, Monti desferiu um soco sobre a mesa e cada um seguiu seu caminho. Desde então, ele e as irmãs não tornaram a se encontrar com a família paterna. Mesmo com o pai a relação se tornou protocolar. Com a chegada do fim do ano, surgiu a dúvida: o que fazer no Natal? Monti, que se mudou para Florianópolis, considera passar as festas na cidade nova e só mandar cumprimentos por telefone: “Minhas duas irmãs vão passar com a família de minha mãe, que já morreu”.

Monti e suas irmãs decidiram boicotar a festa do lado paterno, mas, mesmo com toda a dor e o ressentimento que isso causa, a situação deles parece um pouco melhor que a de Carlos, profissional em São Paulo, onde vive com o companheiro Roberto.

O imbróglio começou antes ainda da campanha eleitoral. Já no Natal de 2016, os dois lados da família passaram por uma saia justa em uma festa na casa da mãe de Carlos, na Região Sul. De um lado, a mãe de Carlos, que não tolerava que se falasse mal de Luiz Inácio Lula da Silva em sua casa. Do outro, a sogra, que resolveu tocar logo no assunto “proibido”. A ceia desandou.

Em 2017, o Natal foi em São Paulo, na casa de Carlos e Roberto. As sogras ficaram pouco, e mal se falou sobre política. “Mas, neste ano, com as eleições, a coisa radicalizou muito mais. Minha sogra declarou abertamente votar em Bolsonaro. Minha mãe apoiou Haddad. Imagine as duas juntas no Natal, que climão seria”, disse Carlos. O companheiro, Roberto, foi o primeiro a bater boca com a mãe pela opção dela nas urnas. Chegou a ir à cidade da família no primeiro turno, no interior de São Paulo, para tentar convencer os parentes a mudar o voto. Sem sucesso, e sem clima para o Natal. “Minha sogra perguntou se seria convidada para vir no fim do ano. Não chamamos. Roberto até fez as pazes com ela, mas não nos sentimos confortáveis com a situação. Ainda não há condições para juntar as duas mães”, disse Carlos.

Não há pesquisas que meçam o tamanho do mal-estar causado pela atual polarização política nas famílias brasileiras. Mas aqui e ali há indícios de um fenômeno sem precedentes na história recente. Ainda no período eleitoral, mensagens enviadas por WhatsApp ou nas redes sociais tentavam fazer graça da situação e se tornaram virais. Tinha desde tentativas meio ingênuas, como “Agora que a eleição acabou podemos brigar pelo que realmente importa. Natal com ou sem uva passa?”, até mensagens mais diretas, na linha de “Pessoal que perdeu membros da família ou amigos nesta eleição, vamos passar o Natal juntos?”. O humor, obviamente, não dissipou as preocupações.

Mais de 50 professores, alunos e ex-alunos do Instituto Sedes Sapientiae, instituição referência na formação de profissionais da área da saúde mental em São Paulo, decidiram, de forma voluntária, criar o que foi batizado de Rodas de Conversa, reuniões gratuitas realizadas antes e também depois do segundo turno em que pessoas aflitas com o contexto político podiam falar sobre as suas angústias. Fundado há mais de 40 anos, antes ainda do processo de redemocratização do país, o Sedes nunca tinha feito algo do tipo por causa de uma eleição. Nos consultórios de psicologia e psicanálise, o período pré-natalino é, comumente, diferente. A proximidade da data em que a família será reunida costuma deixar parte dos pacientes preocupada. Neste ano, o fenômeno ganhou cores muito mais fortes.

Nas Rodas de Conversa, pessoas relataram ter brigado com a família inteira — não só com a sogra. Solitárias e isoladas, às vezes sentem-se paralisadas pelo medo em suas casas. Num dos encontros, uma moça disse: “Este Natal vai ser um estilhaçamento! Minha família come e bebe bem nas festas e até meia-noite ninguém fala de política, mas, lá pela 1 da manhã, basta uma piada e a coisa estoura!”. Numa nota escrita para ÉPOCA, o Instituto Sedes Sapientiae diz que “decepção, tristeza, raiva, ressentimento e perplexidade com familiares, amigos ou colegas de trabalho foram, ao lado do medo do que está por vir, os sentimentos mais presentes nas Rodas”.

Esse drama não é uma exclusividade brasileira. Ao longo dos últimos dois anos, as tensões acerca de discordâncias políticas se acirraram também nos Estados Unidos. Lá preocupações sobre o “futuro da nação” são motivo de inquietude para 57% das pessoas, de acordo com uma pesquisa da Associação de Psicologia Americana (APA). Segundo o mesmo levantamento, a eleição de Donald Trump causou estresse para 52% da população. Um outro estudo, do Pew Research Center, diz que 53% dos americanos acham estressante conversar sobre política com pessoas que defendem ideias opostas às suas — um aumento de 7% em relação a 2016.

Os motivos que levam pessoas — mesmo aquelas que pertencem a uma mesma família — a se desentender por política é algo que a ciência tenta explicar. Há mais de uma década, o tema é objeto de estudo da equipe de Peter Coleman, professor da Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Coleman combina conhecimentos de psicologia e estudos sobre paz e conflitos para entender por que as pessoas discutem e para identificar quais são as habilidades necessárias para resolver diferentes situações de forma efetiva. Recentemente, um aspecto da pesquisa chamou sua atenção: o trabalho sobre polarização e conflitos indissolúveis. Daí surgiu o “Laboratório de conversas difíceis”.

Numa sala pequena e sem janelas, Coleman e seus colegas propõem conversas sobre temas polêmicos — de aborto ao conflito Israel-Palestina. Mais de 500 encontros já foram realizados ali, e nem todos terminaram exatamente bem. Mas o ponto é justamente esse. “Nesse estudo, dividimos as pessoas em duplas com pontos de vista opostos sobre um tema polêmico, e as observamos e gravamos durante vinte minutos de conversa”, disse Becca Bass, pesquisadora do núcleo de Coleman no Centro Internacional Morton Deutsch para Cooperação e Resolução de Conflitos. “Analisamos como as condições iniciais da conversa, os níveis emocionais dos participantes, sua tolerância à ambiguidade e a capacidade de reconhecer ideias aparentemente opostas afetam o desenrolar do diálogo. A ideia é tentar entender as condições, habilidades e práticas que fazem com que a conversa se mova para uma direção destrutiva, em vez de construtiva.”

Algumas conclusões: pessoas que conseguem reconhecer e absorver perspectivas diferentes das próprias tendem a ter conversas mais frutíferas. Elas costumam fazer mais perguntas, propor ideias e deixar o laboratório mais satisfeitas com suas conversas. Em outras palavras, a boa vontade de tentar ver a situação a partir do ponto de vista do outro leva a debates mais construtivos. Esse estudo foi realizado nos Estados Unidos, na Alemanha e também com estudantes estrangeiros em Nova York. Embora possa haver variações culturais, o grupo de Coleman considera que a lógica se aplica a várias culturas — inclusive à brasileira.

Claro que tudo isso é mais fácil dizer do que fazer. No caso da eleição deste ano no Brasil, a polarização se explica, em parte, porque ambos os lados se sentiram encastelados em posições moralmente inatacáveis. De um lado, quem se dizia defensor da luta contra a corrupção e a favor de ideias liberais numa economia anêmica. De outro, pessoas para quem um candidato visto como homofóbico, racista e a favor da ditadura e da tortura deveria ser desclassificado na largada. Passada a eleição, muita gente continua na mesma e agora enfrentará o Natal.

Às famílias que chegarão à ceia ainda conflagradas, Coleman e Bass têm algumas dicas para evitar grandes discussões durante as festas. “Pode ser útil colocar algumas regras básicas se achar que as coisas podem esquentar”, afirmaram. Eis algumas delas:

• incentive os convidados a ouvir com respeito;

• critique ideias em vez de atacar pessoas;

• evite declarações acusatórias;

• concentre-se no aprendizado em vez de na discussão;

• procure pontos em comum e deixe-se surpreender;

• faça perguntas honestas;

• reflita sobre o que está ouvindo;

• tente realmente entender por que seu interlocutor acredita no que acredita.

Para os pesquisadores de Columbia, é preciso lembrar que se vivem tempos de insegurança: turbulência econômica e política, transformações tecnológicas e mudanças climáticas. Sem falar das desigualdades históricas que marginalizaram grupos minoritários. E não há respostas fáceis para resolver as crises atuais nem caminho rápido para a cura do dano que elas causam. Cada pessoa tem reações emocionais diferentes, assim como distintos níveis de tolerância à incerteza e a crenças. “Nossos destinos compartilhados dependem do reconhecimento da nossa interdependência. E nossa capacidade de enfrentar esses desafios depende de admitirmos e alavancarmos os potenciais coletivos”, destacou Bass.

As onipresentes redes sociais são um obstáculo para que os lados em conflito consigam ouvir um ao outro. “As redes sociais nos ajudam a reforçar nossos pontos de vista e a nos blindar do que opositores dizem”, afirmou a psicóloga Sandra Caselato. Há cerca de dez anos, Caselato e o marido, Yuri Haasz, dedicam-se a um campo de estudos chamado “comunicação não violenta”. A expressão foi criada pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg. Um estudioso da violência — e das formas de mitigá-la —, Rosenberg trabalhou, ao longo dos anos 60, em áreas segregadas de escolas e universidades dos Estados Unidos. Instituições que, à época, começavam a admitir estudantes negros. Seu papel ali envolvia identificar focos de conflito e buscar formas de resolvê-los pacificamente. No caso, os instrumentos mais eficientes, na opinião de Rosenberg, eram parecidos com os dos pesquisadores de Columbia: o diálogo franco e a empatia.

A psicóloga Sandra Caselato diz que as redes sociais ajudam a reforçar nossos pontos de vista e a nos blindar do que opositores dizem Foto: Arte sobre foto de Anna Carolina Negri/Agência O Globo
A psicóloga Sandra Caselato diz que as redes sociais ajudam a reforçar nossos pontos de vista e a nos blindar do que opositores dizem Foto: Arte sobre foto de Anna Carolina Negri/Agência O Globo

A ideia que guia a comunicação não violenta é que as pessoas podem até não concordar em determinadas questões, mas podem descobrir que possuem valores e desejos em comum. E que, por isso, são capazes de discutir civilizadamente: “O objetivo é que as pessoas escutem as histórias umas das outras e descubram quais valores guiam suas atitudes. De modo a se conectar por meio das semelhanças entre esses valores”, disse Caselato. Para funcionar, o melhor é que esse diálogo aconteça cara a cara. À distância, sob a mediação de telas e dos códigos próprios das redes sociais, é muito mais difícil resolver um conflito: “Não dá para ouvir o tom de voz, acompanhar a expressão facial e corporal da pessoa. As chances de mal-entendidos aumentam”, disse Caselato. À distância, é mais fácil brigar.

Todos os anos, Caselato e Haasz ministram oficinas de comunicação não violenta a diferentes públicos, no Brasil e fora do país. Os cursos reúnem grupos dos mais diversos: de gestores de empresa a líderes comunitários. Tradicionalmente, atraem também pessoas com problemas para conversar com suas famílias. O último ano foi marcado por uma novidade: “Surgiram pessoas que haviam deixado de falar com parentes por causa de discordâncias políticas”, disse Caselato. “E que, por causa disso, abandonaram o grupo da família no WhatsApp, por exemplo.”

Na casa da carioca Luciana Santos, essa questão assumiu tintas dramáticas quando a irmã e dois primos decidiram sair do grupo de WhatsApp da família. Alegavam que não podiam se relacionar com pessoas “fascistas”. No caso, aquelas que, segundo eles, votavam em Jair Bolsonaro — como Santos. “Foi uma atitude radical desde o início. Meu primo mais velho chegou a dizer que não poderia nem falar com pessoas que votassem no presidente eleito”, lembrou ela.

Na casa de Luciana Santos, o entrevero familiar começou com comentários no WhatsApp Foto: Arte sobre foto de Anna Carolina Negri/Agência O Globo
Na casa de Luciana Santos, o entrevero familiar começou com comentários no WhatsApp Foto: Arte sobre foto de Anna Carolina Negri/Agência O Globo

O dia da votação foi também o do racha. Bolsonaro mal terminara o discurso de eleito quando piscou uma mensagem no grupo da família de Santos: a irmã e os dois primos tinham saído. Parentes ainda tentaram colocá-los de volta no grupo, e eles tornaram a sair. “Meu primo mais velho já nem responde. Minha irmã e o primo mais novo falam, mas não querem saber do grupo porque acham que a família foi conivente, que foi a favor do que aconteceu”, disse ela.

O afastamento não ficou só no meio virtual. Pela primeira vez, o Natal vai ser dividido. Alguns parentes tentaram fazer as vias da diplomacia, mas não teve jeito. “Meus primos não vão. Nem dia 24, nem dia 25. Um deles já faltou ao noivado de minha afilhada, que também é prima e afilhada dele”, conta. Santos disse que também mandou mensagem separada para cada um chamando para a conciliação. “Espero que ano que vem tudo melhore e que todo mundo volte a se falar”, torceu.

Bruno Monti, o personagem do começo dessa reportagem, viu um dos lados de sua família apostar no que os unia, ainda que involuntariamente. Os parentes redescobriram valores comuns como resposta a uma tragédia. Enquanto o lado paterno da família se engalfinhava, lembrou Monti, o lado da mãe deixou a briga de lado para lamentar a morte de um ente querido. Diante da perda de um parente, as discordâncias políticas saíram de foco: “Acho que, desse lado da família, a gente entendeu que valia mais a pena se concentrar nas boas memórias”, disse Monti. As discordâncias políticas permanecem. Mas a harmonia familiar, ao menos no lado materno, foi recobrada.