Coluna
Henrique Balbi Escritor e professor de literatura
Henrique Balbi Foto: EPOCA

O que Fernando Sabino diria do Brasil de hoje?

Há 30 anos, o escritor dizia não ter medo de Collor, mas vergonha. O que falaria de Bolsonaro?

Fernando Sabino, em foto de novembro de 1994 Foto: Marco Antônio Teixeira / Agência O Globo
Fernando Sabino, em foto de novembro de 1994 - Marco Antônio Teixeira / Agência O Globo

O que vou falar corre o risco de ser considerado perigoso, visto que combina duas áreas colocadas na mira do nosso presidente eleito: educação e cultura. Para piorar, falarei de literatura num país onde livrarias fecham e o analfabetismo funcional, além de regra, parece às vezes motivo de orgulho, a julgar pela quantidade de gente que bate no peito e se acha redimida de uma delirante doutrinação comunista. Mas deixemos isso para depois, para outras colunas. Vamos direto ao ponto: Fernando Sabino.

Por causa de uma aula que fui convidado a dar sobre sua obra, revisitei vários dos textos e também algumas entrevistas. Como sempre, é um prazer relê-lo. A agilidade da sua prosa nos dá inveja, logo rebatida pelas risadas que Sabino sabe provocar como ninguém; em instantes, ele nos puxa para dentro de suas tramas, em que equívocos brotam a todo instante e em qualquer lugar; seus contos e crônicas, se é que podemos distingui-los, nunca soam datados, poderiam mesmo ser publicados aqui, neste espaço, com poucos ajustes. Até as entrevistas, em geral tão marcadas pelas suas circunstâncias, parecem dialogar com o momento presente.

Uma delas, em especial, chama a atenção. Estamos em dezembro de 1989, num dia de calor, como evidenciam as marcas de suor na camisa de Sabino. Cercado de jornalistas, no centro do estúdio do programa Roda Viva , da TV Cultura, ele responde a perguntas sobre sua escrita, sua vida, seus amigos; momento raro de um Sabino falante, ele que era tão reservado e desconfiado da imprensa (talvez por ser mineiro; talvez – provavelmente – por ter trabalhado muito como jornalista). Não demora para o assunto política aparecer: o que Sabino pensava a respeito do presidente eleito?

Para quem não está associando a data com a campanha, foi o ano em que Collor venceu uma eleição disputadíssima contra Lula. O espectador de hoje talvez perceba a ironia: quase trinta anos depois, também houve um Fernando no segundo turno (embora em campos opostos) e não só os moldes da corrida eleitoral foram muito parecidos, conforme apontaram vários especialistas na imprensa, como por pouco não tivemos exatamente um dos mesmos candidatos.

Fernando Sabino, porém, não menciona Lula; fala de Collor apenas. É evidente o tom crítico dos comentários do escritor, que parecia ter uma expectativa mais alta em relação ao primeiro presidente escolhido pelo voto direto em décadas. Caio Fernando Abreu, um dos entrevistadores, lembra que Sabino disse não ter medo de Collor, mas vergonha – sentimento que alguns cidadãos, críticos a Jair Bolsonaro, compartilhamos.

(Vale lembrar que a entrevista foi feita dois anos antes da publicação de Zélia, uma paixão , de 1991, a biografia romanceada que Sabino fez da ministra da Fazenda de Collor, Zélia Cardoso de Mello. Escrito às pressas, sem a qualidade costumeira das obras de Sabino, o livro abalou a reputação do autor entre os críticos, que o chamaram de chapa-branca, oportunista, interesseiro. Embora seja um anacronismo, é difícil, quase impossível, esquecer essa mancha na trajetória de Sabino enquanto assistimos à entrevista de 1989.)

Mais adiante, o autor de O encontro marcado tenta encontrar outro ângulo para entender o momento. Enfatiza que, para ele, os brasileiros precisam perder o vício, o cacoete, de “transformar os políticos em líderes e esperar que eles desçam do céu para resolver os problemas”. Mira-se no exemplo dos Estados Unidos, onde vê instituições tão consolidadas que funcionam mesmo com homens medíocres no poder, como Harry Truman (“um político de segunda categoria”) ou Dwight Eisenhower (“que pode ser um grande general, mas era um sargentão como político”).

A tentação de imaginar o que Sabino diria hoje é imensa. Na entrevista, ele diz preferir o parlamentarismo; será que reafirmaria a postura? Como interpretaria a ascensão de Trump à presidência, que por contraste faz Truman e Eisenhower parecerem grandes estadistas? E, principalmente, o que Sabino diria de Jair Bolsonaro, que naquele dezembro de 1989 se preparava para o primeiro mandato de sua carreira legislativa de quase trinta anos, como vereador pelo Rio de Janeiro? Só podemos especular, já que esta coluna não trabalha com psicografias.

Mas as respostas de Sabino parecem importar menos do que as perguntas colocadas. Os desafios que aponta não foram superados. O discurso de salvação da pátria, ancorada numa figura pessoal, por exemplo, teve força em grande parte do eleitorado – de novo. Os homens medíocres não foram domesticados pelas nossas instituições democráticas; elas é que derreteram por causa deles. E, para piorar, na época da entrevista havia, apesar de tudo, uma tendência à esperança, visto que o país se abria para um experimento democrático inédito na sua história. Hoje, não se vê nem sombra dela.

Dos comentários de Sabino, talvez o mais estranho seja justamente o que trata da esperança, da expectativa de dias melhores. Respondendo a um dos entrevistadores, o escritor diz que se mantém otimista, por uma razão muito simples: o otimista erra tanto quanto o pessimista, mas sofre só uma vez. Os leitores de Sabino reconhecerão aí os ecos de uma máxima que ele atribuía ao pai: “No fim, tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim.”

Ler isso hoje, para uma aula ou não, pode nos deixar indignados. Como alguém pode falar uma coisa dessas? Afinal, o desastre ambiental se agiganta; há uma onda de extrema direita no mundo que periga se tornar um tsunami; a violência, a corrupção, a incompetência e a canalhice encontram solo fértil no Brasil. Como é possível pensar assim?

Não sei também, mas desconfio que podemos tirar daí uma lição que nos ajude a viver os próximos quatro anos (ou mais), que nos faça sobreviver a eles. A literatura, afinal, também é isto: uma fonte de ideias e vozes de outro tempo, que emprestamos para melhor enfrentar o nosso.

Henrique Balbi é escritor e professor de literatura

Leia todas as colunas...