Época Ruan de Sousa Gabriel

'Revolta no Chile é fúria reprimida e acumulada', diz Diamela Eltit

Para escritora chilena, desigualdade no país, marcada pelo abandono das periferias, ajuda a explicar onda de protestos e violência
Diamela Eltit Foto: Sophie Bassouls / Sygma via Getty Images
Diamela Eltit Foto: Sophie Bassouls / Sygma via Getty Images

Como todos os anos, no final de agosto, a escritora chilena Diamela Eltit seguiu para os Estados Unidos. De setembro a dezembro, ela dá aulas de escrita criativa na Universidade de Nova York. Foi lá que Eltit ouviu as notícias e viu as imagens das multidões que ocuparam as ruas do Chile para protestar primeiro contra o aumento do preço do metrô.

Um pouco como no longínquo Brasil de junho de 2013, a brutalidade das políticas e os discursos desastrosos dos políticos provocaram as ruas, que permanecem há quase duas semanas ocupadas por milhares de chilenos revoltados contra a vida precária a que foram condenados por decisões econômicas assinadas por políticos.

Eltit participou da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em 2017, mas ainda é pouco conhecida no Brasil. Tem um romance e um e-book publicados por aqui. O romance, Jamais o fogo nunca, traduzido por Julián Fuks e editado pela Relicário, se passa num quarto fechado, onde um casal de ex-revolucionários recorda sonhos políticos do passado.

O e-book, A máquina de Pinochet, lançado pela e-galáxia, é uma coletânea de ensaios. A literatura de Eltit não abre mão nem do compromisso político, nem da crítica, nem da inovação da linguagem e da experimentação estética.

Sua ficção e seus ensaios se preocupam em refletir sobre as continuidades entre a ditadura militar de Augusto Pinochet e a democracia chilena e o controle políticos dos corpos.

Há alguns dias, troquei alguns e-mails com Eltit, interessado em saber como ela estava assistindo à ocupação das ruas chilenas por corpos incontroláveis. Ela me disse que está feliz.

Como a senhora reagiu às imagens dos protestos no Chile?

As primeiras imagens que vi foram de estudantes pulando as catracas do metrô e entrando sem pagar. Foi na quinta-feira 17 de outubro.

A tarifa do metrô havia subido e o ministro ( da Economia, Juan Andrés Fontaine ) havia dito para as pessoas acordarem mais cedo se quisessem pagar menos ( o metrô de Santiago é mais caro nos horários de pico ). Foi aí que tudo começou. A televisão, os jornais, a internet e relatos de amigos me permitiram ver a escalada do conflito.

Até que na sexta-feira e no sábado passados ( 18 e 19 de outubro ), me dei conta de que o que acontecia era um fato inédito na história chilena: uma fúria radical contra o sistema econômico do país. Um duro golpe no neoliberalismo. Fazia todo o sentido. Uma imensa felicidade política me invadiu.

Felicidade política?

Uma felicidade política me invade nestes momentos em que me sinto participante de uma comunidade em busca de um horizonte. Um horizonte amplo, histórico, de uma esperança indestrutível.

Quando amigos lhe perguntam o que está acontecendo no Chile, o que a senhora responde?

O Chile é um país transpassado e invadido pela desigualdade, onde há uma feroz discriminação territorial. As periferias das cidades vivem abandonadas, em condições penosas. A dívida e os juros produzem vidas a crédito sem fim.

A saúde, a moraria, as aposentadorias, a educação e o meio ambiente estão afetados. São anos e anos de aprofundamento de um modelo que naturalizou a desigualdade e segregou mais de metade da população do país.

O estopim dos protestos brasileiras de 2013 também foi a alta nas tarifas do transporte público, mas, depois, as reivindicações se multiplicaram. Há quem culpe junho pela queda da presidente Dilma Rousseff e pela ascensão da extrema-direita. A senhora acredita que algo parecido possa ocorrer no Chile?

Acho que não. Foi a direita imparável que criou essa situação. Os partidos políticos de centro e de esquerda desistiram de estabelecer limites ao modelo neoliberal. Os chilenos se revoltaram contra o estado das coisas e não há líderes com quem dialogar.

Essa revolta é a fúria reprimida e acumulada há pelo menos 30 anos. Nós também temos nosso Bolsonaro. O nome dele é Juan Antonio Kast, mas, por ora, não me parece que ele tenha se fortalecido, pelo contrário. Mas o mundo dá voltas e devemos esperar, ainda que hoje ele só fale com os militares.

A senhora vê alguma força política capaz de responder aos chilenos nas ruas?

Não me parece que haja uma força política capaz de gerar algum consenso. Os partidos de centro e esquerda se elitizaram, romperam os vínculos com a cidadania. As lideranças são inexistentes devido ao desprestígio e ao desdém.

A verdade é que haverá uma saída, mas não sei como, quando e com quem. O que me parece muito difícil é o futuro do governo de Sebastián Piñera, porque estes dias e as mortes lamentáveis, os feridos, os soldados e seus tanques, as balas, os golpes, nada disso poderá ser esquecido.

Nas manifestações de junho de 2013 e nas ocupações das escolas secundárias de 2015, a frase “Acabou a paz, isto aqui vai virar o Chile” virou palavra de ordem, remetendo aos protestos estudantis chilenos de 2011...

Os protestos estudantis de 2011 foram muito importantes, mas eram concentrados. A explosão de agora é outra coisa. Não há líderes. Os militares estão nas ruas com toda a sua violência, mas não amedrontaram a população. Os direitos dos cidadãos estão suspensos, mas a cidadania ninguém pode deter.

Há toda uma pesquisa do corpo, seus limites e suas relações com o social em seus livros. Agora, as ruas chilenas estão cheias de corpos. Qual o poder político, social e estético de tantos corpos nas ruas?

O uso do corpo como signo de protesto também tem componentes estéticos e há grupos que sabem atuar política e esteticamente de maneira muito relevante. Mas, para mim, o que mais importa nas ruas é a estética da multidão, são as multidões reunidas ou caminhando, semeando na terra um enxame de pássaros prontos para voar.

Os leitores brasileiros costumam recorrer a livros de autores chilenos como Alejandro Zambra e Lina Meruane para compreender o Chile pós-ditadura. Que livros de ficção chilena a senhora nos recomenda a ler para entender melhor o que está acontecendo?

Hoje o mais eloquente é ler as imagens chilenas e entender como nelas se expressa a agonia social contra os projetos neoliberais baseados na desigualdade e na exclusão.

Devemos olhar as imagens de hoje para conter, enquanto há tempo, os ferimentos causados a metade da população. Nem água nós temos no Chile. Foi privatizada. A vida é hipotecada. A comida é comprada a crédito. Os juros acompanham toda a vida da população.

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