Época Rio 1129

Ex-capitão do Bope promoveu aliança entre milicianos e bicheiros

À frente do Escritório do Crime, Adriano da Nóbrega avalizou nos últimos anos tomadas de poder em ao menos duas escolas de samba, Salgueiro e Vila Isabel
Depois de assistir ao desfile do Salgueiro, o bicheiro Bid, de uma família que disputa o controle da escola, voltava para casa quando foi assassinado. Foto: Fabio Rossi / Agencia O Globo
Depois de assistir ao desfile do Salgueiro, o bicheiro Bid, de uma família que disputa o controle da escola, voltava para casa quando foi assassinado. Foto: Fabio Rossi / Agencia O Globo

O jogo do bicho domina as escolas do Carnaval no Rio de Janeiro, e desde que o samba é samba é assim. Mas, nos últimos anos, vem ganhando corpo uma aliança inédita dessa ala da contravenção com outra instituição carioca do crime, as milícias, como sinaliza um assassinato na madrugada de terça-feira, quando a Marquês de Sapucaí ainda vibrava com a passagem das escolas de samba no segundo dia de desfiles. Alcebíades Paes Garcia, o Bid, irmão do bicheiro Maninho (ele próprio assassinado, em 2004), foi morto a tiros na Barra da Tijuca, depois de assistir ao desfile do Salgueiro, escola cujo controle é disputado por sua família.

O crime é mais um capítulo de uma longa e sangrenta guerra entre os bicheiros pelo controle territorial de áreas do Rio, e pelo consequente domínio dos pontos de apostas ilegais e de distribuição de caça-níqueis. Mas agora com um ingrediente inédito: a associação com as facções de assassinos de aluguel formadas por milicianos, das quais a mais famosa é o Escritório do Crime.

Essa nova configuração da cúpula das escolas de samba foi liderada por um personagem de renome nacional, o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, um dos chefes da milícia de Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade, e morto há duas semanas pela Polícia Militar baiana em uma operação ainda nebulosa.

Shanna, filha do bicheiro Maninho, foi alvo de um atentado no ano passado. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Shanna, filha do bicheiro Maninho, foi alvo de um atentado no ano passado. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

À frente do Escritório do Crime, ele avalizou nos últimos anos tomadas de poder em pelo menos duas escolas de samba, Salgueiro e Vila Isabel. Suas digitais também são investigadas no assassinato, em setembro de 2016, de Falcon, então presidente da Portela e subtenente reformado da PM. Ali surgiam os primeiros indícios de que a ligação entre bicheiros e milicianos era mais que um lance de Carnaval.

O avanço da milícia no samba e a mudança no poder se dão no momento da sucessão da velha guarda do bicho por seus herdeiros. A ambição dos mais jovens pelos pontos de caça-níqueis e a violência dos ex-policiais que debandaram para o crime nas milícias têm contribuído decisivamente para tornar ainda mais sangrentas disputas que nunca foram pacíficas.

Alcebíades Paes Garcia, o Bid, morto a tiros, na madrugada de terça-feira de Carnaval, gostava de viagens internacionais e caçadas. Foto: Reprodução / Instagram
Alcebíades Paes Garcia, o Bid, morto a tiros, na madrugada de terça-feira de Carnaval, gostava de viagens internacionais e caçadas. Foto: Reprodução / Instagram

A Vila Isabel foi, de três escolas que conheceram a brutalidade de Adriano da Nóbrega, a que experimentou a presença mais ostensiva do miliciano. Os investigadores da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro encontraram entre os pertences de Adriano dois crachás da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio (Liesa), dos anos de 2016 e 2017, em que ele aparece como diretor da Vila. Com essa credencial, tinha livre acesso à pista nos desfiles da Sapucaí.

A escola afirmou a ÉPOCA que o credenciamento de Adriano foi feito a pedido de Myro Garcia, o Mirinho, filho de Maninho. Assim como o pai, e agora o tio, o jovem também foi assassinado — em 2017, ano da última credencial de Adriano. Segundo a Vila Isabel, Mirinho pôde pedir a credencial do miliciano porque era membro benemérito da escola. O atual presidente da agremiação, Fernando Fernandes, afirmou que Adriano nunca foi diretor, que seu nome não consta em qualquer ata ou documento da agremiação, e que nunca o viu na quadra ou em desfile.

“O ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, morto há duas semanas pela PM baiana, foi um dos principais artífices da aliança entre milicianos e bicheiros que vem reconfigurando a cúpula das escolas de samba”

­
­

Adriano era o braço direito do contraventor Bernardo Bello quando este assumiu o controle da Vila Isabel. Aqui, a trajetória da Vila se cruza com a de outra escola bem próxima na geografia dos morros cariocas, o Salgueiro. Bello foi casado com Tamara, uma das filhas de Maninho, o patrono do Salgueiro assassinado em 2004. No ano passado, ele foi acusado pela irmã gêmea de Tamara, Shanna, de ser o mandante de uma emboscada em que ela quase foi morta. Para não perder a conta: o então marido de Tamara, conhecido como Zé Personal, também foi morto a tiros, em 2011. Esses são apenas os mais destacados de uma série de assassinatos — cada um para vingar o anterior, e que resulta na próxima morte — que acontecem entre os bicheiros há anos.

O ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega chegou a receber por dois anos credencial de trânsito livre no Sambódromo, concedida pela Vila Isabel. Foto: Reprodução
O ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega chegou a receber por dois anos credencial de trânsito livre no Sambódromo, concedida pela Vila Isabel. Foto: Reprodução

Assim como controlam a venda de botijões de gás e a instalação de “gatonet”, milicianos cobram pedágio de bicheiros pelo funcionamento de caça-níqueis em áreas sob seu controle. Em outros casos, milicianos passam a ser os “donos” das máquinas, pagando um aluguel aos contraventores. Mas o pedágio ou o aluguel não são o ponto final. A luta tem se inclinado na direção de a milícia escantear contraventores enfraquecidos, dominando a jogatina. É por isso que as escolas de samba entraram em seu radar: dividi-las com bicheiros ou tomá-las inteiramente significa controle total sobre seus territórios.

­ Foto: Reprodução
­ Foto: Reprodução

Policiais e ex-policiais sempre fizeram parte das equipes de segurança dos bicheiros, a novidade agora é a entrada mais organizada das milícias na batalha.

No Salgueiro, o ex-policial Jorge Luís Fernandes, apontado como miliciano pela Polícia Federal, é próximo ao atual presidente, o empresário André Vaz. Jorginho, como é conhecido o ex-PM que já esteve preso acusado de participar da máfia dos caça-níqueis, é presença certa no camarote da presidência da quadra do Salgueiro, na Tijuca, Zona Norte do Rio.

O presidente do Salgueiro afirmou a ÉPOCA que a escola não tem relação com milícia, contravenção ou qualquer atividade ilegal. Admitiu conhecer o ex-policial Jorginho, mas disse que não tem relação próxima e que ele não financia a escola. Já Jorginho reconhece que é amigo de André Vaz há mais de dez anos, mas disse que nunca ocupou cargo de direção no Salgueiro ou patrocinou a instituição. “Qualquer tentativa de ligar Jorge a ilicitudes não passa de calúnia vil”, disse seu advogado.

“Milicianos cobram pedágio de bicheiros para a instalação de caça-níqueis em seus domínios e, em alguns casos, decidem controlar eles próprios a indústria da jogatina ilegal — essa influência já chegou às agremiações”

­
­

Na Mocidade Independente de Padre Miguel, o PM reformado Ronnie Lessa, hoje preso acusado de participar do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, trabalhou como segurança do bicheiro Rogério Andrade.

A morte de Marielle representou um ponto de inflexão nas investigações das milícias. A apuração da atuação dos matadores profissionais ganhou impulso e desvendou laços de Adriano e outros milicianos com outros braços do crime organizado, além de suas conexões políticas.

A morte do bicheiro Maninho, assassinado em 2004, detonou uma disputa que já dura 15 anos e não dá sinais de que vai arrefecer. Foto: Guilherme Pinto / Agência O Globo
A morte do bicheiro Maninho, assassinado em 2004, detonou uma disputa que já dura 15 anos e não dá sinais de que vai arrefecer. Foto: Guilherme Pinto / Agência O Globo

Não é um processo exclusivo de escolas do Grupo Especial, as mais famosas. As dos grupos de acesso que desfilam na Estrada Intendente Magalhães, em Campinho, Zona Oeste do Rio, sofrem com a ameaça e a tomada de diretorias por indicados de milicianos. Em junho de 2015, o presidente da União do Parque Curicica, Wagner Rafael de Souza, o Dádi, foi executado com tiros de pistola dentro de seu carro. Ele fora eleito apenas três meses antes e teria contrariado ordens da milícia sobre a agremiação. A suspeita pesou sobre o ex-PM Orlando Oliveira de Araújo, o miliciano Orlando Curicica. Um sobrevivente do ataque o apontou como um dos criminosos. Depois, em juízo, a testemunha voltou atrás.

Na Quarta-Feira de Cinzas, após uma disputa apertada, a Viradouro sagrou-se a grande campeã do Carnaval carioca, depois de um jejum de 23 anos. A festa acabou, mas as investigações sobre a disputa violenta de poder nas escolas de samba ainda são um enredo em construção.

O QUE VOCÊ VAI LER EM ÉPOCA DESTA SEMANA

PERSONAGEM DA SEMANA
JOGO DO BICHO
Como um assassinato na terça-feira de Carnaval joga luz sobre a aliança entre a contravenção e a milícia

O VÍRUS GLOBAL
CORONAVÍRUS
Especialistas apontam o que pode acontecer agora que o vírus chegou ao Brasil

FILHOS QUE MATAM
POR DENTRO DO CRIME DO ABC
A polícia já sabe como Anaflávia e Carina planejaram a morte da família Gonçalves

HÉLICES DA FÉ
ENTIDADE COMPRA HELICÓPTERO PARA EVANGELIZAR ÍNDIOS
A Missão Novas Tribos do Brasil, da qual o novo dirigente da Funai já foi missionário, quer chegar aos confins da Amazônia

CONCORDAMOS EM DISCORDAR
RICARDO TAVARES DE CARVALHO × HENDERSON FÜRST
O médico e o advogado divergem sobre se a eutanásia deve ou não ser um direito

6 PERGUNTAS PARA...
OLIVIER ROY
O cientista político francês afirma que a Europa vive uma crise de identidade que alimenta fundamentalismos religiosos e populismos

TÁ NA REDE
AS PARÓDIAS DO FUTEBOL SÃO UM SUCESSO
Canções bem-humoradas sobre ídolos da bola somam 2,3 bilhões de visualizações em canal do YouTube

A VIDA QUE ELE LEVOU
LARRY TESLER
O criador do Ctrl+C Ctrl+V participou dos episódios mais importantes da história da informática e defendeu que computadores fossem acessíveis para todos

VIVI PARA CONTAR
O DONO DE NOVE OUROS OLÍMPICOS ENVELHECE
Lenda da natação, Mark Spitz fala sobre sua carreira de atleta e a passagem do tempo

ARQUITETURA REDENTORA
NOVOS EDIFÍCIOS QUE REDESENHAM O RIO
Com novos ícones, cidade é indicada como a capital mundial da arquitetura

O OCASO DO PREDADOR
A BRASILEIRA QUE CONHECEU HARVEY WEINSTEIN
Carioca convocada para depor em julgamento conta o que sabia sobre o caso

Colunistas

Guilherme Amado
A esquerda perdida

Monica de Bolle
A epidemia como pretexto

Helio Gurovitz
As divergências que impulsionam a ciência no tempo

Allan Sieber

Larry Rohter
A morte de um defensor dos direitos humanos