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Coluna | A leitura como ritual dos enlutados

Em 'Janelas irreais', de Felipe Charbel, narrador lê para entender a própria vida
Felipe Charbel, autor de "Janelas irreais" Foto: Divugação
Felipe Charbel, autor de "Janelas irreais" Foto: Divugação

No início de 2015, depois de desfazer seu segundo casamento e voltar ao Rio de Janeiro após nove meses em Nova York, o narrador de Janelas irreais: um diário de releituras , romance (ensaio?) do carioca Felipe Charbel, publicado pela Relicário, resolve reler Os detetives selvagens , de Roberto Bolaño .

Na verdade, ele relê toda a obra de Bolaño (com a desculpa de escrever um ensaio) e deixa Os detetives selvagens por último porque, quando o leu pela primeira vez, em 2007, era feliz: “fui muito feliz, em 2007, lendo esse livro”. Por que reler, em tempos enlutados, um livro que nos recorda tempos felizes?

No ensaio “O que é um leitor?”, o argentino Ricardo Piglia escreve que "nesse universo saturado de livros, em que tudo está escrito, só é possível reler, ler de outro modo". Piglia defende "uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossíveis", uma "disposição para ler segundo o interesse e a necessidade", que talvez explique por que alguém resgata da estante um livro do passado.

Mas qual "o interesse e a necessidade" que levam o narrador de Charbel a reler Bolaño? A esperança de voltar a ser feliz como em 2007? De recordar como é se sentir feliz? Aliás, o narrador não relê só Bolaño. Ele elabora uma lista de releituras: Detetives selvagens , O teatro de Sabbath , de Philip Roth, Quase memória , de Carlos Heitor Cony , e Ruído branco , de Don DeLillo.

No “diário de releituras” do subtítulo, em entradas que se estendem de janeiro de 2015 a setembro de 2016, ele embaralha impressões das releituras com notas sobre a própria vida: o pai morto, a primeira mulher (“a inominável”), o desmoronar do casamento com Hanna (a segunda mulher), um caso com uma ex-aluna que ele chama de Emma (que outro nome um leitor daria para uma adúltera que também gosta de ler?).

De novo: qual “o interesse e a necessidade” que levam o narrador de Janelas irreais a reler esses livros? A julgar pelas anotações do diário, ele lê para elaborar o luto: do pai, dos casamentos desfeitos e de si próprio (“Não sou quem eu pensava ser, quem me preparei para ser. Ao contrário do que imaginei, o meu potencial não é assim tão grande”).

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O que têm a ver a leitura e o luto? No começo do relato, o narrador recorda que, poucos meses após a morte do pai, a mãe lhe presenteou com as Confissões de Rousseau: “ela deve ter imaginado que só um livro me faria superar o torpor do luto, abrindo uma trilha na mata fechada do meu inconsciente”. A mãe decerto tinha razão, porque o filho confessa ter terminado a leitura “com a certeza de que precisava de reparos na minha vida interior” e, nos lutos futuros, voltou a buscar consolo e orientação nos livros.

Mas por que seriam a leitura e a releitura rituais apropriados para enfrentar o luto? No romance Vidas reinventadas , do soviético-nova-iorquino Boris Fishman , Arianna, uma jovem jornalista, explica a Slava, um escritor aprendiz, as “regras” do luto no judaísmo, um punhado de rituais como não fazer a barba, ficar em casa, evitar o espelho, sentar-se em banquinhos baixos. Esses rituais não servem para atormentar ainda mais quem já está sofrendo, mas para oferecer algum consolo; ajudam a atravessar o período de luto , a organizar uma dor que é disforme, turbulenta, carente de sentido e não linear. “O judaísmo pede que você enxergue além de si mesmo e te ajuda quando você não consegue”, diz Arianna, repetindo as palavras de um professor. A literatura não faz a mesma coisa ?

Rituais costumam envolvem cantorias, repetição de palavras e mexer o corpo. Como pode a leitura, um hábito silencioso e solitário, ser um ritual? Talvez devêssemos perguntar a Lutero e seus discípulos: a Reforma Protestante desautorizou os rituais e promoveu a leitura da Bíblia como disciplina espiritual capaz de fornecer conforto e orientação em tempos luto e cânticos alegres em tempos de júbilo, de prever os dias futuros e de determinar a conduta cotidiana.

Se a vida do católico se organizava em torno de rituais públicos, como a eucaristia, a procissão e a observância dos dias santos; o protestante se dedica a um ritual privado: a leitura, ou melhor, a releitura da Bíblia , que é invariavelmente marcada por “uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossíveis”.

O narrador de Janelas irreais parece praticar essa leitura que é ao mesmo tempo sagrada e profana . Sagrada porque confia na autoridade do texto para consolar e orientar, para emprestar palavras que ajudem a organizar a dor (ele não esconde “o recurso a letra do texto para melhor nos entendermos, nos explicarmos”).

E profana porque é uma leitura interessada, despreocupada com qualquer intenção original do texto; porque está disposta a torcer as palavras para arrancar delas lições e profecias. O narrador se debruça sobre os trechos grifados por Hanna em O teatro de Sabbath na esperança de descobrir o que ela não lhe dizia, como se as frases de Philip Roth expressassem o que a esposa se negava a revelar. Ele procura ali pistas do fracasso de seu casamento como quem procura a carta que o suicida não deixou.

O narrador é um grifador relutante, sabe que é possível escrever um diário inteiro só com citações: “O fato de não grifar obras de ficção diz muito sobre a pessoa que fui e, de certo modo, continuo sendo. Eu queria, na realidade, precisava, manter os meus segredos bem guardados, imunes à bisbilhotice, e aquelas verdades sublinháveis podiam se revelar bastante incômodas se eu as deixasse circular livremente por aí”. Mas às vezes ele cedia e grifava: “Era a maneira que eu tinha de gritar, acho: dois pequenos riscos nas margens de uma frase”.

Num dos últimos aniversários do pai, o narrador lhe dá de presente seu próprio exemplar de Quase memória , “manuseado, encardido, rabiscado aqui e ali com anotações comprometedoras”. Por que resolveu autorizar o pai a bisbilhotar aquelas verdades sublinháveis e incômodas? O que ele anotara ali? Teria o narrador também grifado o exemplar das Confissões que leu para superar o torpor do luto?

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Janelas irreais se passa entre 2013 e 2016, mas há poucas referências, explícitas ou não, a tudo o que aconteceu naqueles anos e nos trouxe a este presente onde parece ser melhor enfiar a cara num livro do que ler os jornais: as Jornadas de Junho, o derretimento da economia, o impeachment de Dilma Rousseff .

Por que um narrador tão lido, antenado nas últimas modas da filosofia crítica, demonstra tão pouco interesse pelo que acontece do lado de fora das janelas reais, em interrogar se a linha que separa o pessoal do político não seria tão ilusória quanto a que divide ficção e não ficção? O ritual da leitura não serve também para elaborar lutos públicos?

Janelas irreais é muita leitura às vezes dura, demasiado cerebral, que talvez funcionasse melhor se se assume como um ensaio, sem pretensões romanescas. Falta ao narrador a malandragem de Emilio Renzi (alter ego de Piglia) e dos poetas infrarrealistas dos romances de Bolaño , leitores incorrigíveis que faziam da vida um prolongamento da literatura e viceversa, que sabiam que vez ou outra é preciso levantar os olhos das janelas irreais, feitas de papel e tinta, e voltá-los às janelas reais, aquelas atrás da poltrona onde o leitor enlutado se acomoda à procura de palavras capazes de organizar sua dor.