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Coluna | Conciso ao extremo, Edyr Augusto prova que causar desconforto também é virtude

Belhell, o novo romance do autor paraense, acompanha diversos personagens que atravessam o submundo de Belém

O escritor paraense Edyr Augusto
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Luiz Braga/Divulgação
O escritor paraense Edyr Augusto Foto: / Luiz Braga/Divulgação

Quando publicou Bonsai , o escritor chileno Alejandro Zambra disse que pretendia escrever “um bonsai de romance”. “Borges aconselhava a escrever como quem redige o resumo de um texto já escrito. Foi o que fiz, o que tentei fazer: resumir as cenas de um livro inexistente. Em vez de somar, subtraía”, explicou Zambra num texto incluído na edição de Bonsai & A vida privada das árvores publicada pela Tusquets. Depois de ler Belhell , o novo romance do escritor paraense Edyr Augusto editado pela Boitempo, me peguei pensando se existe algum bonsai amazônico. Se existir, decerto não transmite a mesma serenidade que a arvorezinha japonesa.

Em Belhell , Augusto adota um método narrativo parecido com o pretendido por Zambra: resume cena; em vez de somar, subtrai. Apesar da concisão extrema, a história narrada é imensa, um quebra-cabeças alucinado do centro de Belém do Pará, a cidade que se mistura ao inferno no título do livro. Belhell tem capítulos curtos, os mais longos não passam de cinco páginas (o livro tem 152 páginas) e todos têm títulos, como se fossem episódios que contam a vida de um punhado de personagens. O ritmo é aceleradíssimo.

Tudo pode mudar de um parágrafo para o outro. Em poucas linhas, o policial vira bandido, o bandido morre, mas qual dos bandidos morreu mesmo? Corta para uma cena no cassino. Acabou a jogatina, agora é sexo. Outro tiroteio. Quantos dias se passaram desde o começo desse capítulo?

Belhell acompanha diversos personagens que atravessam o submundo de Belém (alguns deles vindos de bairros ricos e até de Brasília). O que liga todos eles é o Cassino Royal, frequentado por políticos, bandidos, madames e ricaços. O dono do Royal é o dr. Marollo, um médico que enriqueceu se casando com uma das filhas da elite paraense e fazendo negócios com um deputado.

Ele é dono de uma rede de hospitais e ainda embolsa um dinheiro que deveria ir para o SUS. Ao redor dele, orbitam capangas como seu filho, um playboy fortinho e mimado; Gil, que é casado com uma cafetina anã; e Paula, uma moça bonita que enriqueceu jogando pôquer. No hospital do dr. Marollo trabalha Sérgio, um médico que sai pelas madrugadas à caça de mendigos para enforcar com fio cirúrgico. Ele goza quando as vítimas expiram.

A mulher dele frequenta o Royal e às vezes paga dívidas de jogo na cama. E há também Paulo, apaixonado por Paula desde a adolescência. Depois de um deslize, ele, que era um policial civil competente, se junta aos bandidos e rapidamente vira chefe das milícias.

Todos os personagens narram um pouco, mas há um responsável por amarrar tudo: um tal de Escritor que aparece no começo do livro. Depois de passar um tempo rondando o centro de Belém, ele é chamado por um chefe da bandidagem, Bronco, ex-capanga do dr. Marollo, que promete lhe contar toda essa história criminosa. Parece que vem daí o estilo agilíssimo e atropelado de Augusto.

É como se ele fosse o Escritor (e Augusto gosta de se confundir com seus narradores), que precisa tomar notas correndo enquanto Bronco fala e só consegue anotar algumas frases, palavras-chave, tentando não perder nada. Bronco talvez emende uma história na outra, interrompa um relato e comece outro, protagonizado por outro personagem.

E o Escritor vai registrando tudo, sem se preocupar em, depois, revisar, botar uns conectivos aqui e ali, florear um pouquinho ou refrescar a memória do leitor.

Belhell é um livro esquisito. A prosa corre tanto que o leitor não consegue largá-lo e não para de virar as páginas. Ao mesmo tempo, o leitor precisa sempre parar para respirar e entender o que está acontecendo, quem são os personagens em cena, para onde foram os outros, que dia é hoje.

Ao dar de cara com a prosa de Belhell , é difícil não se perguntar como Augusto escreve: ele escreve primeiro uma narrativa mais tradicional, tranquila, com frases mais longas e conjunções, acompanhando cada passo dos personagens, e depois sai cortando tudo como um jardineiro enlouquecido que precisar arrumar um bonsai em poucas horas?

Edyr Augusto já tem sete livros publicados e é editado na França — Belhell saiu ao mesmo tempo aqui e lá. Ele chamou a atenção da crítica (leia-se: da imprensa do Sudeste) com Pssica (Boitempo), de 2015.

Seus livros apresentam um cenário que aparece pouco na literatura brasileira contemporânea (leia-se: na literatura resenhada pela imprensa do Sudeste): uma Belém distante dos clichês amazônicos, ainda que apareçam o mercado Ver-o-Peso e menções ao Círio de Nazaré. É uma Belém violenta, suja, degradada, impiedosa.

Ler os livros de Edyr Augusto não serve apenas para alargar as fronteiras geográficas e temáticas da literatura brasileira, mas também para tomar contato com um outro tipo de escrita, um estilo diferente daquele a que está acostumado o leitor de romances narrados por intelectuais da classe média paulistana, carioca e gaúcha.

Todos sabemos (ou fomos convencidos disso) que concisão é uma virtude e que a boa literatura se apoia em uma linguagem seca, pretensamente sem adornos, direta, nada esparramada. Augusto põe essa convenção à prova ao adotar uma linguagem concisa ao extremo, tornando a experiência do leitor um pouco desconfortável — e não só porque o obriga a ler sobre mendigos assassinados e bandidos que morrem e matam a cada página.