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Coluna | Em 2019, literatura brasileira arriscou novas perspectivas para pensar velhos problemas

Romances de Paulo Scott, Itamar Vieira Junior e Joca Reiners Terron botaram o dedo nas feridas do racismo, do genocídio indígena e da destruição amazônica
Photo taken in Barcelona, Spain Foto: Jordi Clave / EyeEm / Getty Images/EyeEm
Photo taken in Barcelona, Spain Foto: Jordi Clave / EyeEm / Getty Images/EyeEm

Na semana passada, compartilhei aqui os livros que, a meu ver, melhor escutaram, representaram e questionaram o Brasil dos anos 2010, das revoltas de junho de 2013 à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Apesar do que um punhado de gente previa, o mundo não acabou depois da eleição de Bolsonaro . Talvez porque o mundo não acabe de repente, com um único ato de força bíblica, mas vai acabando, apodrecendo, queimando aos poucos, como a Floresta Amazônica ou as liberdades democráticas.

Uma das imagens mais associadas ao fim do mundo, talvez tão popular quanto o arrebatamento bíblico e o retorno glorioso de Jesus, é a vinda de um meteoro que, como uma bomba, destruiria a vida na Terra como a conhecemos. Em 2019, a literatura brasileira registrou a chegada desse tão esperado pedregulho celestial em A morte e o meteoro , romance de Joca Reiners Terron, que, ao lado de Marrom e Amarelo , de Paulo Scott, e Torto arado , de Itamar Vieira Junior, formou uma tríade de livros urgentes publicados no ano passado.

Num ano em que o Brasil, espremido entre florestas em chamas e praias inundadas de óleo, assistiu ao retorno da censura, foi ameaçado com um novo AI-5 e autorizou o encolhimento dos direitos previdenciários, esses três romances pensaram nossos dilemas contemporâneos e nossos traumas e crimes históricos. Encararam corajosamente um Brasil sanguinário e falaram sobre racismo, persistência do escravismo, conflitos agrários, genocídio indígena, colapso ambiental e tentativas do Estado de criminalizar a resistência.

Com uma prosa alucinada, num fluxo de consciência ritmado que parece sair da máquina de escrever de algum beatnik escolado em gírias gaúchas, Marrom e Amarelo bota o dedo na ferida racista brasileira. O narrador é Federico (não, não é Frederico), um militante antirracista, pesquisador da “hierarquia cromática”, da “pigmentocracia” brasileira. Ele é convidado pelo governo para participar de uma comissão que discute soluções para o “caos que, de súbito, tinha se tornado a aplicação da política de cotas raciais para estudantes no Brasil”. Nas universidades, aumentavam as denúncias de brancos se declarando pardos, reivindicando um bisavô negro para acessar a política de cotas. A resistência às cotas também crescia e parte do movimento negro exigia a criação de critérios que substituíssem a autodeclaração para aferir quem tem direito à reserva de vagas. A comissão (e o governo) propõe desenvolver um software que avaliarias fotos dos candidatos e concluiria quem é suficientemente preto, pardo ou indígena.

Federico tem a pele clara, mas seu pai e seu irmão, Lourenço, são negros retintos. Passa facilmente por branco e, desde menino, desviava dos insultos racistas que atingiam o irmão. Apesar disso, é ele, não Lourenço, o militante da família. Ele e sua sobrinha, Roberta, presa por resistir à reintegração de posse de um prédio ocupado por sem-teto e ameaçada com Lei Antiterrorismo, sancionada por Dilma Rousseff em pleno processo de impeachment.

Marrom e Amarelo recusa maniqueísmos, trabalha o tempo todo com a contradição e sugere perguntas desconfortáveis: como assim o irmão “branco” é o militante antirracista? Por que o taxista negro prefere louvar os estancieiros ricos que encabeçaram a Revolução Farroupilha aos solados negros traídos pela elite gaúcha? Por que a defesa mais aguerrida do software que substitui a autodeclaração vem de uma mulher negra? Nestes tempos binários, em que algumas palavras-chave foram eleitas para nortear, para circunscrever quais são as opiniões políticas válidas (e quem têm direito a empunhá-las), Marrom e Amarelo desvia de argumentos ontológicos, da pretensa superioridade moral dos oprimidos que, no fim, serve apenas para afagar consciência política de ativistas de Twitter e ajudá-los a ignorar que as cercas mantêm a segregação brasileira são feitas de material mais resistente do que palavras. Colocar discursos desconfortáveis e problemáticos na boca de personagens de quem esperaríamos esclarecimento político é muito, muito diferente de reciclar ou legitimar delírios da direita; é lembrar que a realidade é complicada, que todos somos ambíguos e que precisamos de mais do que palavras mágicas, virtudes morais e softwares para nos salvar.

Palavras mágicas não têm efeito na realidade, mas a procura por novas palavras, por novas narrativas, pode nos ajudar a enfrentá-la. A morte e o meteoro apresenta a cosmogonia indígena como fonte inspiração e resistência. O romance narra o exílio os últimos remanescentes dos índios kaajapukugis no México depois da redução da Amazônia a um punhado de árvores e da extinção das reservas indígenas. O desterro dos kaajapukugis para o México é articulado por Boaventura, um sertanista esquisito, filho de um guerrilheiro desaparecido no Araguaia e de uma suicida. Boaventura é assassinado misteriosamente e quem narra toda essa história é um burocrata mexicano que acabou de perder os pais — quem melhor para narrar o presente ou o futuro distópico no qual o presente ameaça se desdobrar do que um enlutado?

Nos trechos mais bonitos do livro, o leitor conhece um pouco das concepções indígenas sobre o tempo, que não é linear ou utilitária, e ignora “a ilusão representada pela distinção entre passado, presente e futuro”. Também não são utilitárias as relações sociais, não há nelas traço de individualismo. “Ao contrário dos brancos que vivem separados e se unem apenas na hora da morte ou nem isso”, os indígenas vivem sempre juntos. São lições valiosas, que nos convidam a encarar o presente (e o futuro) de outra maneira, a encontrar formulações diferentes para nossos problemas aparentemente sem solução. Quando tudo o que tentamos dá errado, quando todas as explicações são insuficientes e levam mais ao desespero e à paralisia do que à ação, talvez ajude buscar outras referências, outras narrativas, tomá-las emprestadas de quem sempre viu a história da margem.

Torto arado também dá voz a quem sempre esteve à margem. As narradoras são três: Bibiana, Belonísia e uma entidade do jarê, religião afro-brasileira praticada na Chapada Diamantina. Bibiana e Belonísia são filhas de camponeses negros e pobres, que vivem e trabalham em terra alheia sem receber um centavo, como se a escravidão nunca tivesse sido abolida. Bibiana narra a primeira parte do livro; Belonísia, a segunda. Quando crescem, as irmãs se voltam à política e à religião. Junto do marido, Bibiana luta pelo direito dos camponeses ao salário e à terra, tenta organizar um sindicado rural e ensina as crianças a ler e escrever. Belonísia substitui o pai na liderança do jarê e no cuidado dos doentes de corpo e espírito. No tempo em que comandava as “brincadeiras de jarê”, o pai das narradoras, Zeca Chapéu, fazia as vezes de líder político, de pelego, a apaziguar conflitos entre o dono do latifúndio e os trabalhadores que achavam que a terra era de quem nela trabalhava. Ao contrário do pai, Belonísia não usa a fé para acalmar os ânimos dos revoltosos e defender patrão. Ela se une à irmã na luta. A não serve de ópio, mas ajuda a protestar.

A terceira parte de Torto arado é narrada por uma entidade do jarê. Torto arado dá voz não só às mulheres negras e pobres que se rebelam contra a ordem escravocrata, mas também à fé dessas mulheres, uma fé que serve de combustível político e que corre perigo no Brasil do “Deus acima de todos”: os ataques à terreiros cresceram 47% em 2018, informou O Globo . A entidade do jarê, Santa Rita Pescadeira, narra a história do Brasil desde os tempos da colônia até os dias em que se passa o final do livro (que, aliás, parece um pouco o final de Bacurau , sem conciliação).

Ela conta a história sob uma outra perspectiva, a perspectiva dos que não escreveram os livros de história, dos que não tiveram acesso às palavras capazes de falsear a realidade e esconder a violência. Talvez esteja aí a maior virtude de Torto arado (e de A morte e o meteoro ): levar ao centro uma perspectiva antes periférica, ajudar o leitor a deslocar o olhar para ver melhor e, assim, questionar o que ele achava que já conhecia.

Que a literatura que vem por aí, nos anos 20, esteja aberta a novas referências e narrativas que nos permitam pensar de novo, pensar melhor, sem medo da contradição, de meter a mão e as palavras na realidade, e do futuro.