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Coluna | Lina Meruane e a cegueira de quem só vê imagens duplas

Em 'Sangue do olho', escritora chilena mostra que a proeza intelectual de enxergar tudo em dobro não é diferente de não enxergar nada
A escritora chilena Lina Meruane Foto: Getty Images
A escritora chilena Lina Meruane Foto: Getty Images

De volta ao Chile, ainda no aeroporto de Santiago, a narradora de Sangue no olho , romance de Lina Meruane , encontra um “repórter inflado”, antigo colega de jornal que ela é incapaz de reconhecer. Também recém-chegado de Nova York, ele anuncia uma reportagem que vai, enfim, relevar “as conexões entre o nosso onze e o deles”.

O “nosso”: 11 de setembro de 1973, quando militares chilenos, apoiados pelos Estados Unidos, derrubaram o presidente socialista Salvador Allende e instauram uma das mais sangrentas ditaduras latino-americanas. O “deles”: 11 de setembro de 2001, quando aviões sequestrados por terroristas islâmicos derrubaram as Torres Gêmeas. “Não acha essa coincidência do onze alucinante”, pergunta o repórter. “Não é coincidência nem é repetição”, responde a narradora. “Não passa de uma estranha imagem dupla”.

Publicado pela extinta Cosac Naify , em tradução de Josely Vianna Baptista, e reeditado pela Sesi-SP, Sangue no olho é um estranho romance sobre a cegueira construído por meio de imagens duplas. A primeira delas é a própria narradora, que se entende dividida em duas: Lucina e Lina Meruane. Lucina é uma chilena que vive em Nova York, onde prepara uma tese de doutoramento sobre a doença na literatura latino-americana. Lina Meruane é autora dos romances que Lucina escreve.

Filha de médicos e diabética, Lucina vive ameaçada por veias que podem estourar a qualquer momento e encharcar seus olhos de sangue, condenando-a à cegueira e a abandonar de vez a ambição de ser Lina Meruane. Uma noite, numa festa nova-iorquina, a ameaça se cumpre e Lucina precisa aprender a ser cega.

Enquanto espera para ser operada pelo doutor Lekz, um oftalmologista ex-soviético, Lucina se muda para o apartamento do namorado, um espanhol chamado Ignacio, e depois viaja para Santiago, onde é importunada pela família, que tenta a todo custo convencê-la a tratar seus olhos no Chile. Em seu penoso aprendizado da cegueira, Lucina escuta audiolivros e organiza o mundo em estranhas imagens duplas, espelhadas, no meio das quais ela parece presa, imobilizada.

Ainda em Nova York, pouco tempo depois da festa, ela e Ignacio haviam topado com um vendedor de móveis cujo companheiro morrera na epidemia de aids. No Chile, eles jantam com um velho amigo Lucina, cujo companheiro também morrera de aids. (Meruane, aliás, é autora do ensaio Viajes virales , indisponível no Brasil, sobre a representação da aids na literatura latino-americana.

Nova York e Santiago também são imagens duplas. Em uma cidade, ela pode ser Lina Meruane e, quando enxerga, contemplar a “vista para o vão das torres de Manhattan”. Na outra, ela é sempre Lucina, sufocada pelos cuidados familiares, pela ausência de um irmão e a presença de outro, e pela mãe que é uma “delicada flor carnívora”. As torres que não existem mais em Manhattan reaparecem como “monumentos de decadência” em Santiago, onde as marcas de balas nos prédios próximos ao palácio presidencial denunciam o terror daquele 11 de setembro.

A dupla da mãe é a médica. A mãe daria os próprios os olhos para salvar Lucina da cegueira. A médica é contida e ocupada com seus próprios pacientes. Lucina quer e não quer ser cuidada pelas duas. Ela parece incapaz de reconhecer que a mãe e a médica são uma só. Como amar a mãe e aceitar ser cuidada por ela se junto vem a médica cerebral e distante? Como se submeter à médica se com ela está a mãe?

Lucina não suporta a presença materna e não sabe reagir a ela por não conseguir fundir essas duas imagens numa única mulher. Há tanta duplicidade no romance que o leitor talvez não se surpreenda quando, após uma cirurgia, Lucina passa a ver tudo em dobro.

Narrado se fosse um thriller, lembrando às vezes um livro de terror, Sangue nos olhos nos ajuda a pensar sobre um estranho efeito colateral de desdobrar tudo em imagens duplas, da operação intelectual que ao mesmo tempo divide e relaciona: a imobilidade.

Lucina/Lina Meruane é uma intérprete hábil, capaz de reconstituir a rede de relações entre o golpe chileno e os ataques terroristas de 2001, entre as torres espelhadas de Santiago e de Nova York, umas mais decadentes que as outras. Sabe que a própria mãe, fora de casa, representa outros papéis.

No entanto, enxergar tudo isso, todas essas relações, não a ajudam a agir. Ela permanece imóvel, como quem acaba de perder a visão. As imagens duplas de Santiago e Nova York são fixas, demasiados distantes entre si. Lucina/Lina Meruane entende como uma espelha a outra, mas não permite que elas se contaminem, não se atreve a misturá-las para construir um lugar intermediário para ela própria, que permanece em perpétuo exílio, no Chile e nos Estados Unidos. Seu intelecto consegue entender as contradições maternas, mas não abarcá-las. Ao dissecar constantemente a mãe e a médica, mantém-se distante de ambas.

Às vezes, a proeza intelectual de enxergar tudo em dobro, de não deixar escapar nem um único fio em intrincadas redes de relações, tem o mesmo efeito de não enxergar nada.