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Coluna | Romance de Julian Barnes sobre Flaubert traz lições para críticos literários

'O papagaio de Flaubert' é narrado por um médico inglês que prefere os negócios da literatura aos da vida
Conceptual image of birds flying out of an open book. Foto: Gregoria Gregoriou Crowe fine ar / Getty Images
Conceptual image of birds flying out of an open book. Foto: Gregoria Gregoriou Crowe fine ar / Getty Images

Geoffrey Braithwaite odeia os críticos. Não porque os críticos sejam escritores fracassados — “geralmente não o são; podem ser críticos fracassados, mas isso é outra história”. Também não é por serem os críticos gente difícil de agradar, que gosta de espetar autores com suas canetas ferinas e emburradas — ele reconhece que são mais comuns os críticos bajuladores, culpados de “promover a mediocridade” ao distribuir elogios só para não ficar mal com quem detém os meios de publicação ou para não ser o único que não destacou a narrativa ágil, potente e nada gratuita do último autor da moda.

Briathwaite odeia os críticos porque eles recorrem às armas mais baixas e pouco criativas para atacar um escritor, como a crítica irlandesa Enid Starkie, que reclamou que Flaubert não construía suas personagens como descrições objetivas, “como fazia Balzac”, era negligente e não sabia sequer se os olhos de Emma Bovary eram negros, castanhos ou azuis.

O fato de Flaubert ter afirmado numa página que os olhos de Emma eram azuis e noutra que eram negros quer dizer o quê? Que devemos dar três e não cinco estrelas a Madame Bovary ? Que quando um jovem leitor de província começar a falar com carinho de Emma devemos revirar nossos olhos e dizer que Flaubert não sabia nem de que cor eram os olhos de sua personagem e depois esperar em silêncio que todos se admirem dos leitores atentos e exigentes que somos?

Braithwaite é o narrador de O papagaio de Flaubert , romance ágil, potente e nada gratuito de Julian Barnes, publicado em 1984 e editado por aqui pela Rocco. O papagaio de Flaubert foi o primeiro romance publicado por Barnes, que, nas décadas seguintes, tornou-se um dos mais festejados escritores britânicos, autor de títulos elogiados como O sentido de um fim , A única história e O ruído do tempo , e vencedor de prêmios importantes, como o Booker Prize.

Ao lado de Ian McEwan, Salman Rushdie e Martin Amis, Barnes foi saudado com um dos renovadores da prosa em língua inglesa no começo dos anos 1980.

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Braithwaite é um personagem de ficção (mas a professora Starkie de fato existiu). Ele é um médico de meia-idade, viúvo, leitor de Flaubert, parece saído de uma melancólica comédia inglesa. A cor dos olhos de Emma não lhe importa tanto; ele quer descobrir qual papagaio empalhado serviu de modelo a Flaubert para a descrições do papagaio de Felicité, a criada do conto “Um coração simples”.

Dois museus franceses, ambos nos arredores de Rouen, a cidadezinha normanda de Flaubert, onde Emma se arruinou, expõem cada um papagaio empalhado que, dizem, inspirou a pena do escritor. Enquanto apura a história dos papagaios, Braithwaite se debruça sobre a vida de Flaubert à procura de pistas, defende o escritor de críticos mesquinhos e conta um pouco de sua própria vida e da saudade que sente de sua mulher morta, Ellen.

O resultado da falação de Braithwaite não é uma investigação sobre os métodos descritivos de Flaubert, sobre a relação dele com os animais ou uma tentativa de biografar o autor de Madame Bovary . São esboços, notas de leitura.

O papagaio de Flaubert narra a trajetória de um leitor apaixonado, atendo e criativo, que não se relacionada com a literatura com a frieza ressentida dos críticos que resenham por dinheiro, mas dos que leem porque não veem razão para fazer outra coisa .

Embora Braithwaite não mencione muitos outros autores de sua predileção além de Flaubert, é seguro desconfiar que ele prefere a calma das leituras à rotina no consultório médico. Ele não nos conta sequer qual é sua especialidade — se a ginecologia, a ortopedia ou a nefrologia —, mas se lembra de citar uma frase do ensaísta britânico-americano Logan Pearsall Smith: “Dizem que a vida é um negócio, mas eu prefiro ler”.

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Observar a relação de Braithwaite com a leitura pode dar uma ou outra lição aos críticos da escola da professora Starkie. A principal delas talvez seja não perder tempo tolices como a cor dos olhos de Emma Bovary. Isso quer dizer que não se deve cobrar coerência de uma autor? Não.

Quer dizer que impor regras a um autor e repreendê-lo por não segui-las não leva a lugar nenhum e ainda pode envergonhar o crítico. Starkie se incomoda com o olhos ambíguos de Emma — os olhos ambíguos de uma adúltera — porque, se Balzac descrevia objetivamente seus personagens, Flaubert também não podia fazê-lo? Mas Flaubert não deve perder pontos porque desrespeitou as lições de Balzac, assim como nenhum escritor merece ser repreendido porque tomou decisões que contrariam o gosto pessoal do crítico.

Um livro não deve responder às exigências de um crítico, mas às exigências trazidas pelo próprio livro . Todo livro, ainda que seu autor não assuma isto publicamente, tem a pretensão de responder a uma pergunta ou, nos melhores casos, de formular uma pergunta da forma mais complexa possível e, quando muito, apenas esboçar uma resposta.

O crítico pode discordar da resposta (quando há) ou rejeitar a pergunta. Mas talvez seja melhor pensar em como as perguntas e respostas são elaboradas, também em termos estilísticos. As escolhas que o autor faz o ajudam a elaborar melhor suas perguntas e respostas? Ou se trata de um escritor que usa a linguagem para esconder, para falsear, e que oferece perguntas mal formuladas e respostas simplistas?

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A crítica da professora Starkie além de inoportuna, é equivocada Foto: Priscila Zambotto / Getty Images
A crítica da professora Starkie além de inoportuna, é equivocada Foto: Priscila Zambotto / Getty Images

A crítica da professora Starkie, além de inoportuna, é equivocada. Braithwaite mostra, citando a fonte, que Flaubert não erra a cor dos olhos de Emma, mas conta como a luz e o sentimento de quem via aqueles olhos prejudicavam a objetividade descritiva.

Não é curioso que seja tão difícil descrever os olhos de uma mulher que passou o livro todo querendo ser outra, enganando a todos e até a si mesma, cada vez mais oblíqua e dissimulada? Faltou objetividade a Flaubert ou sensibilidade ao crítico?

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O que faz de Braithwaite um leitor criativo e sensível? Talvez seja o que o move à literatura. Ele não lê para escrever e publicar ensaios que vão impulsionar sua carreira acadêmica ou para pagar as contas.

Também duvido que ele leia apenas em busca de prazer estético. Por que ler, então? “Se todas as suas reações a um livro já foram reproduzidas e ampliadas por um crítico profissional, qual é o sentido de você ler o livro? O sentido é que se trata da sua leitura. Da mesma forma, por que viver a sua vida? Porque é a sua ”, diz Braithwaite. É curiosa essa aproximação da leitura com a vida, essa descrição da leitura como ato criativo, de afirmação individual e, portanto, de liberdade.

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“É nos livros que as coisas nos são explicadas; é na vida que não o são”, diz Braithwaite. Ele lê em busca de um sentido que falta à vida ? Mas ele quer dar sentido a quê? E por que procurar esse sentido em Flaubert?

A biografia de Braithwaite talvez nos ajude a esboçar uma resposta. Ele é um médico inglês e viúvo, viúvo de Ellen, de quem ele não consegue não falar mesmo quando fala de Flaubert. Charles Bovary, o marido de Emma, também era médico, um medíocre médico de província. Tão medíocre que Emma preferiu as aventuras convencionais do adultério.

No final de Madame Bovary Charles também é um viúvo. Pois é... Antes de qualquer conclusão, é melhor lembra outra frase do doutor Braithwaite: “O ponto em que se desconfia de que se esteja lendo demasiado numa história é aquele em que se sente mais vulnerável, isolado e talvez tolo”.