Coluna
Ruan de Sousa Gabriel Repórter de Época e O Globo, escreve sobre livros e mercado editorial
Ruan de Sousa Gabriel Foto: Marcelo Saraiva

Ferrante, Starnone e a linguagem da ascensão social

Os narradores dos dois romancistas italianos sabem que é preciso aprender um novo idioma para fugir de uma classe

Duas palavras: “vagido” e “escandir”. Se eu fosse algum tipo de advogado ou promotor literário, usaria essas duas palavras para denunciar um suspeito parentesco entre os romancistas italianos Elena Ferrante e Domenico Starnone. Ok, não seria uma acusação original. Não são novidade os boatos que sugerem que por trás das aventuras de Lenu e Lila na Tetralogia napolitana (Biblioteca Azul) estaria a pena de Starnone ou de sua esposa, a tradutora Anita Raja. As pistas são muitas: uma investigação do jornalista Claudio Gatti, que sugeriu que o patrimônio de Raja condizia mais com os ganhos de uma escritora best-seller, como Ferrante, do que com os modestos rendimentos de uma tradutora; a leitura espelhada dos romances adúlteros Dias de abandono (Biblioteca Azul), de Ferrante, e Laços (Todavia), de Starnone; a investigação de uma trupe de físicos da Universidade de Roma, que recorreu a um software especial para analisar os romances de Ferrante e concluiu que era “altamente provável” que tivessem sido escritos por Starnone. Mas nenhuma dessas evidências me parecem tão conclusivas quanto essas duas palavras: “vagido” e “escandir”. Vou tentar explicar.

O Houaiss ensina que “vagido” é o “choro da criança recém-nascida”, o “som que se assemelha a esse choro”, “lamento, gemido”. Confesso que não conhecia essa palavra até lê-la repetidas vezes nos quatro volumes da Tetralogia napolitana . Lá, as crianças não choramingavam ou faziam birra, mas vagiam – ora em italiano, ora em dialeto napolitano. Lenu, a narradora dos livros, parecia gostar de verbos declarativos esdrúxulos. Os personagens não afirmavam, diziam ou exclamavam – eles escandiam . O significado de escandir eu conhecia – contar as sílabas poéticas de um verso –, mas nunca havia me deparado com ele em outro lugar que não uma aula de literatura. “Escandir” também significa pronunciar as palavras com esmero, quase declamá-las. Nunca me espantou que Lenu gostasse de palavras difíceis como “vagido” e “escandir”. O que espantou foi topar com essas duas palavras – “vagido” e “escandir” – em Assombrações (Todavia), romance de Starnone recém-publicado no Brasil. (Vale lembrar que tanto a Tetralogia de Ferrante como o romance de Starnone foram traduzidos por Maurício Santana Dias)

Assombrações narra os poucos dias que o festejado ilustrador Daniele Mallarico passou em Nápoles cuidando do netinho enquanto a filha e o genro viajavam a trabalho. Mario é um insuportável menino de 4 anos, uma dessas crianças extremamente articuladas e exibidas que enchem de orgulho os pais e afugentam as visitas. Mario fala um italiano impecável, sem sombra dialetal – mas solta uns vagidos de vez em quando: “chorava como choram as crianças desoladas, sem nenhum freio, lançando vagidos de desespero”. O menino cresce no mesmo apartamento napolitano em que o avô nasceu, mas protegido da fúria e da vulgaridade dialetal que Mallarico conheceu desde pequeno. Para o avô, o italiano que Mario fala tão bem é quase uma segunda língua, um idioma estrangeiro, burguês, que substituiu o dialeto napolitano de sua infância. Talvez por isso Mallarico precise “escandir” as palavras para que o neto entenda o que ele diz.

O verbo “escandir” aparece numa das cenas mais bonitas do livro, quando Mallarico leva o neto para passear pela Nápoles de sua infância e começa a se lembrar de como os professores se esforçavam para ensinar italiano a meninos proletários educados em dialeto. Os mestres repreendiam as crianças que diziam (e sentiam) “’a raggia”, em dialeto. O correto – e o italiano – era “ira”. Mas a raiva proletário-napolitana não cabia no italiano refinado: “a língua napolitana que se falava no Vasto, no Pendino, no Mercato – os bairros onde eu crescera e, antes de mim, tinham crescido meu pai, meus avós e bisavós, talvez todos os meus antepassados – não conhecia a palavra ira , a ira de Aquiles e de outros que agiam dentro dos livros, mas apenas ’a raggia . A gente desta cidade, pensei, destes bairros, praças, ruas, becos e banquinhas do porto, cheia de cansaço, de cargas e descargas ilegais, se arraggiava , não ficava irada”, reflete. Mallarico não troca apenas o dialeto napolitano pelo italiano. Ele também troca a brutalidade de Nápoles por Milão, uma metrópole europeia, e, em vez de se formar operário como seus antepassados, aprende o ofício de ilustrador. Quando ele volta a Nápoles, voltam também o dialeto e as memórias do que ele poderia ter sido se não tivesse fugido de sua classe social. E, para conseguir ser aceito em outra classe social, ele precisou aprender a escandir bem as palavras em italiano.

A trajetória “sociolinguística” de Mallarico é parecida com a de Lenu. Na minha leitura, a Tetralogia napolitana é, sobretudo, um romance sobre a improvável ascensão social de uma menina inteligente da periferia que, por sorte e por mérito, conseguiu se educar. Ao longo dos quatro livros, me impressionou a oposição entre o dialeto e o italiano, o esforço de Lenu para aprender a se expressar – a pensar – na língua de seus professores, no idioma dos livros, que ela não ouvia na vizinhança onde cresceu. Desconfio que Nino Sarratore a encantava porque dominava o italiano, porque sabia pregar a revolução dos trabalhadores na língua dos burgueses. A discussão sobre a linguagem e a ascensão social aparece em algumas das cenas mais memoráveis da Tetralogia: quando Pietro, o marido de Lenu, a acusa de só falar com frases feitas, como quem decorou alguns versos numa língua estrangeira, mas carece de vocabulário para articular um discurso; quando Lila diz que Lenu parece um papagaio, repetindo o jeito de falar dos ricos.

Ok, talvez a repetição de palavras como “vagido” e “escandir” e do tema da ascensão social pela linguagem não seja a uma prova assim tão inquestionável do estranho parentesco de Ferrante e Starnone/Raja. Mas não deixa de ser curioso que o tema da ascensão social – da ascensão social sentida como uma dolorosa traição das origens – se repita nos dois autores. Tanto Ferrante quanto Starnone se esmeram no uso da linguagem: envolvem o leitor com uma prosa densa e vigorosa e, além disso, politizam as palavras. A linguagem, afinal, não é apenas a matéria-prima da literatura; ela também é uma cerca que separa os homens de acordo com sua origem (geográfica e social), uma cerca de arame farpado, dessas que as crianças mais corajosas tentam atravessar, esgarçando os fios metálicos para passar o corpo sem muitos arranhões. Suspeito que é isso que Lenu e Mallarico façam quando narram suas histórias: botam as mãos no material frio que os mantinha apartados e o moldam até dar-lhe uma forma onde caibam eles, suas origens e, felizmente, nós, os leitores.

O escritor italiano Domenico Starnone - [email protected] / Aific/Divulgação/CC BY 3.0

Ruan de Sousa Gabriel é repórter de ÉPOCA e O GLOBO , escreve sobre livros e mercado editorial

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