Coluna
Ruan de Sousa Gabriel * Repórter de Época e O Globo, escreve sobre livros e mercado editorial
Ruan de Sousa Gabriel Foto: Marcelo Saraiva

O cânone literário da Ursal

A unificação das literaturas latino-americanas vai nos fornecer mais material para entender nossas contradições

Na última quinta-feira (9), no meio daquele debate presidenciável sonolento , Cabo Daciolo denunciou que Ciro Gomes estaria envolvido na criação de uma “pátria grande”, a União das Repúblicas Socialistas da América Latina, a Ursal – para a honra e a glória do Foro de São Paulo. Ciro desconversou, mas a internet (sempre ela...) não perdeu tempo e começou a sonhar com os inumeráveis benefícios da união latina, como a Presidência ocupada por Pepe Mujica, a queda dos preços de charutos cubanos e vinhos chilenos e uma seleção eneacampeã defendida por Neymar, Messi e Suárez.

Um amigo meu apontou para outra feliz consequência da dissolução das fronteiras latino-americanas: unificação de nossos cânones literários. Machado de Assis e Jorge Luis Borges enfim juntos numa única pátria literária. A Gabriela de Jorge Amado passeando faceira pela Macondo de Gabriel García Márquez. Gregório de Matos e Sor Juana Inés de la Cruz lado a lado em antologias de poesia barroca ignoradas pelos discípulos de Antonio Candido. Os contos de Clarice Lispector filmados em Montevidéu por cineastas argentinos interessados na angústia existencial da classe média. Ninguém mais vai precisar ler José de Alencar, porque Iracema vai virar novela na Televisa.

A unificação do cânone latino-americano pode provocar alguns conflitos no começo, como guerras de guerrilha entre patotas literárias que discordam sobre quem é o maior nome das letras ursalinas: Borges ou García Márquez? Machado ou Octavio Paz? Ou será Pablo Neruda? Mas, sem dúvida, a formação de uma única pátria literária trará incontáveis benefícios – econômicos, inclusive. O combalido mercado editorial brasileiro contará com as charmosas livrarias e o robusto exército de leitores argentinos para alavancar as vendas e, quem sabe, vencer a crise. Suspeito que assistiremos também ao desenvolvimento do portunhol como língua literária. O espanhol e o português ficarão restritos a romances regionalistas e panfletagem separatista. Os jovens escritores ursalinos, que curtem autoficção, experimentações literárias e escrevem romances sobre as angústias de escritores aprendizes em bairros de boêmios, devem começar a escrever em portunhol, também para indicar que os conflitos existenciais do intelectual de classe média não estão restritos a uma língua ou a dois ou três bairros de São Paulo.

O maior benefício da unificação literária será a possibilidade de ler como nosso o cânone que hoje é estrangeiro. Vamos poder ler (e interpretar) Borges e Nicanor Parra como literatura brasileira, porque na Ursal ser brasileiro, argentino ou guatemalteco será a mesma coisa. Isso enriquecerá muito nossa crítica, que poderá se debruçar sobre o cânone latino-americano e procurar ali os vínculos entre a forma literária e a formação social de todo o continente, e não apenas de países específicos. O método apropriado a essa nova crítica foi antecipado por Borges no conto “Pierre Menard, autor do Quixote ”: é “a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas”. Essa “técnica de aplicação infinita”, ensina Borges, nos permite, por exemplo, ler A imitação de Cristão , um livro de orações escrito por um padre alemão no século XV, como se tivesse sido escrito por James Joyce.

O crítico brasileiro Roberto Schwarz encontrou, nos romances de Machado de Assis, as tais “ideias fora do lugar”: a convivência, no Brasil, de ideologias liberais com a ordem escravocrata, da modernidade com o atraso. A técnica do anacronismo deliberado nos permite enxergar essas contradições tão ursalinas (porque brasileiras) não apenas em Machado, Graciliano Ramos ou Carlos Drummond de Andrade, mas também – por que não? – em Borges. Tomemos como exemplo o conto “O sul”, de Borges. É a história de um rapaz chamado Juan Dahlmann, neto de um pastor protestante alemão, mas ligado à província argentina por laços de sangue maternos. O jovem trabalhava numa biblioteca em Buenos Aires, mas a propriedade rural decadente que a família mantinha no sul nunca lhe saía da cabeça. Dahlmann é quase um eu lírico drummondiano, aquele que é funcionário público e na roça pensa no elevador e no elevador pensa na roça. O sul para ele era quase uma Itabira, a cidadezinha mineira que é dolorido retrato na parede no poema de Drummond.

No final do conto, Dahlmann vai à província e se mete numa briga de bar com um peão. Ele sabe que vai perder. Ele sabe manusear livros, não punhais, e talvez tenha aprendido algumas histórias bíblicas com seu avô pastor. Mas nada disso serve para derrotar a ordem arcaica e violenta que resiste nas profundezas da província. O anacronismo deliberado nos permite enxergar as contradições da modernização brasileira/ursalina no destino de Dahlmann. Ele descende de ideais liberais importados da Europa (o protestantismo do avô), mas não consegue se dissociar de um passado autoritário e rural, no qual as relações sociais são medidas pela violência. Os dilemas de Dahlmann são tão brasileiros quanto Brás Cubas.

Ao leitor que acusa o anacronismo deliberado de torcer – quase falsear – as obras literárias e entulhá-las de sociologia barata, quero lembrá-lo de que essa técnica depende do triunfo de uma espécie de União Soviética andino-caribenho-tropical profetizada pelo Cabo Daciolo num debate presidencial. O Cabo, aliás, além de profeta, é um bom exemplo de como a ideia fora de lugar que o Vovô Dahlmann trouxe na bagagem (o protestantismo) passou de projeto civilizatório liberal a ideologia a serviço da reprodução do atraso.

Memes da Ursal se espalharam após o debate - Reprodução

Leia todas as colunas...