Coluna
Ruan de Sousa Gabriel * Repórter de Época e O Globo, escreve sobre livros e mercado editorial
Ruan de Sousa Gabriel Foto: Marcelo Saraiva

O meteorito questionador

Como Machado de Assis e o meteoro que sobreviveu ao incêndio no Museu Nacional podem nos ajudar a encarar nossos problemas

Imagens feitas dentro do Museu Nacional após o incêndio mostram o meteoro que "sobreviveu" ao fogo - Reprodução

“Cumpre não perder de vista o meteorólito de Bendegó.” Assim começa uma crônica publicada na Gazeta de Notícias , um finado jornal carioca, em 27 de maio de 1888. Se alguém ainda falasse — ou escrevesse — “meteorólito”, essa mesma frase poderia ser replicada num punhado de textos jornalísticos que, desde o último domingo (2), informam sobre as consequências do incêndio que destruiu o Museu Nacional. O meteorito de Bendegó, encontrado no interior da Bahia no século XVIII e acomodado no Museu Nacional desde 27 de novembro de 1888, resistiu às chamas. Alexander Kellner, diretor do Museu, citou o Bendegó como um símbolo da resistência brasileira às calamidades. “Quando vocês tiverem a oportunidade, tirem foto deste meteorito. Ele está ali, é o Bendegó. Da forma como ele resistiu, nós também vamos resistir. Mas temos de repensar como o Brasil olha para sua história”, afirmou, segundo O Globo .

Crônica Machado de Assis 1 - Reprodução

Foi Machado de Assis quem aconselhou o leitor a não perder de vista o Bendegó. Entre abril de 1888 e agosto de 1889, Machado publicou crônicas na Gazeta , nas quais comentava, com aguda ironia, o noticiário político: a libertação dos escravos, os ventos republicanos, as discussões sobre federalismo. Machado escrevia sob pseudônimo. Só nos anos 1950 descobriu-se que ele era o autor das crônicas da Gazeta , que foram reunidas na antologia Bons dias! . Machado publicou a crônica do “meteorólito de Bendegó” duas semanas após a Lei Áurea. “Enquanto toda a nação bailava e cantava, delirante de prazer pela grande lei da abolição, o metereólito de Bendegó vinha andando, vagaroso, silencioso e científico, ao lado do Carvalho”, diz a segunda frase da crônica, cheia da famosa galhofa machadiana. A “grande lei da abolição”, sabia Machado, era insuficiente e conservadora: libertou os escravos, mas nada fez para reparar três séculos de cativeiro e integrar a população negra. Na crônica da semana anterior, Machado relativizara a abolição, uma vez que os ex-escravizados podiam agora ser contratados por seus antigos senhores por salários miseráveis, alterando muito pouco as relações de mando.

Crônica Machado de Assis 2 - Reprodução

A crônica do “meteorólito” narra uma conversa entre o Bendegó e José Carlos de Carvalho, um barão do Império que liderou uma comissão de engenheiros para estudar e transportar o meteorito. A caminho do Rio de Janeiro, o Bendegó reclama que as ferrovias brasileiras são muito lentas (“Lá em cima, andamos com velocidade de mil raios: aqui, nestas ridículas estradas de ferro, a jornada é de matar”) e pergunta por que sua passagem por Salvador ouriçou a classe política. Carvalho explica que, em nome do federalismo (ou seja, da autonomia das províncias e do poder local), alguns políticos quiseram impedir o transporte do Bendegó para a capital do Império. A Câmara Municipal se reuniu em sessão extraordinária para discutir se o meteorito era baiano ou se pertencia a todos os brasileiros. Dois vereadores votaram contra a viagem do Bendegó ao Rio – isso, aliás, não é ficção, aconteceu mesmo.

Crônica Machado de Assis 3 - Reprodução

Carvalho explica ao Bendegó que discussão federalista animava os brasileiros. Conta até de alguns projetos que sugeriam que o Império brasileiro adotasse a Constituição dos Estados Unidos. O meteoro pergunta como é que os brasileiros pretendiam adotar uma Constituição republicana e federalista se o país ainda tinha rei. Carvalho insinua que o meteorito não entendia nada de “invenções constitucionais” e que os EUA só não eram uma monarquia hereditária, como o Brasil, devido às diferenças climáticas. “Ninguém se admira, por exemplo, de que lá se fale inglês e aqui português”, argumenta Carvalho, em favor das peculiaridades nacionais. O diálogo insólito ilustra aquilo que o crítico literário Roberto Schwarz chamou de “ideias fora do lugar”: a importação de ideologias liberais e esclarecidas para conviver com o arcaísmo brasileiro. A Constituição americana, por exemplo, não deveria ser adotada para se construir, aqui nos trópicos, uma democracia de massas, mas para dar um verniz de modernidade aos caprichos das elites locais, que não se importavam com o sustento de imperador poderoso o suficiente para se impor ao Legislativo.

Crônica Machado de Assis 4 - Reprodução

Outra “ideia fora do lugar” aparece no diálogo entre o barão e o meteorito. Carvalho conta ao Bendegó que rumores de República circulavam no país. O meteorito pergunta, em francês, se por acaso a nova República, pós-abolição, seria negra. Mas ele próprio já responde (em francês): decerto a República seria branca, como qualquer outra. Carvalho rebate. Diz que muitos argumentavam que a escravidão teria acabado muito antes se o Brasil fosse uma República. Mas o meteorito lembra que a escravidão prosperou por muito tempo no sul dos EUA, apesar do governo republicano.

É curioso que o meteorito seja o personagem questionador da crônica. É o Bendegó quem faz as perguntas, quem desmonta as falsas soluções, quem aponta as contradições e expõe o desejo do barão-burocrata de ignorá-las. No meio da fumaça da tragédia nacional, talvez o meteorito que sobreviveu ao incêndio possa reeditar o papel questionador que desempenhou naquele Brasil machadiano, espremido entre uma abolição incompleta e uma república insuficiente.

Muito se falou, nos últimos dias, das causas e consequências do fogo no Museu Nacional: culpados foram apontados e soluções propostas — e é preciso, sim, apontar os culpados. Mas as falas de ministros que acusam outros órgãos públicos e governos, a pregação de que um choque de capitalismo é a melhor prevenção de incêndio e até a convicção de que o Brasil era o paraíso dos museus uma década atrás soam um pouco como o discurso de Carvalho. Tudo é muito simples. Basta que cada órgão faça seu trabalho direito, que o mercado cuide do patrimônio cultural ou que este ou aquele candidato se eleja. São soluções de aparência, que não dão conta da complexidade dos problemas (e das contradições) envolvidos — assim como uma lei assinada por uma princesa imperial ou um gesto de um marechal aposentado, além de não resultarem numa vida social inclusiva e republicana, permitiram que o atraso se organizasse de outra maneira. A fumaça prejudica nossa visão, mas nossos ouvidos devem estar atentos ao meteorito de Bendegó (e a Machado de Assis) a questionar nossas soluções fáceis e ideias fora do lugar, a nos lembrar de que nossos problemas têm raízes profundas, que não cabem num tuíte, e exigem respostas criativas. Cumpre dar ouvidos ao “metereólito de Bendegó”.

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