Coluna
Ruan de Sousa Gabriel * Repórter de Época e O Globo, escreve sobre livros e mercado editorial
Ruan de Sousa Gabriel Foto: Marcelo Saraiva

Os progressistas e a Bíblia

Os conservadores não detêm nenhum monopólio sobre o texto bíblico e aprender a linguagem religiosa pode ajudar a esquerda

Jesus Cristo apareceu duas vezes nos últimos minutos da entrevista do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL-RJ) no Roda Viva , na semana passada. Primeiro, o colunista do GLOBO Bernardo Mello Franco lembrou que, anos atrás, Bolsonaro, que gosta de se apresentar como um homem cristão e se insinuar para o eleitor evangélico, chamou os refugiados de “escória do mundo”. “O senhor sabia que Jesus Cristo foi refugiado?”, perguntou. Bolsonaro respondeu com críticas a nova Lei de Migração brasileira e negou ser xenófobo. Alguns minutos depois, quando o jornalista Ricardo Lessa, apresentador do Roda Vida , pediu que ele citasse uma frase ou verso de que gostasse, Bolsonaro repetiu um versículo do Evangelho de João: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. O versículo bíblico pareceu meio fora de lugar ali. Pouco antes, Bolsonaro havia dito que seu livro de cabeceira é A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça , de Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador da ditadura. Como pode um homem que conta com o apoio de um exército de divulgadores de notícias falsas e quer reescrever a história da ditadura militar elogiar o poder libertador da verdade?

O versículo bíblico de Bolsonaro passou despercebido, mas o Jesus refugiado não. O pastor Silas Malafaia, que crê fervorosamente em Bolsonaro, disse no Twitter que chamar Jesus de refugiado era “asneira de quem não entende nada de Bíblia e cristianismo”. Alguns bolsonaristas foram à página de Mello Franco no Facebook para atacá-lo. “Você difamou o nome de nosso Senhor Jesus Cristo usando ele para defender políticas de integração forçada de terroristas”, escreveu um rapaz, sem explicar por que um homem que foi crucificado ao lado de ladrões consideraria um xingamento ser chamado de refugiado. No Twitter, Marina Silva – evangélica, pentecostal e presidenciável – disse amém à exegese bíblica de Mello Franco. “Jesus Cristo foi um refugiado e nos ensinou sobre amor, respeito, humildade e compaixão, jamais sobre tortura, preconceito e ódio”, escreveu.

Vamos ver o que diz a Bíblia : no segundo capítulo do Evangelho de Mateus, o rei Herodes, um fantoche dos romanos, ouve falar que o verdadeiro rei dos judeus acabara de nascer em Belém. Morrendo de medo de ser destronado por um bebê divino, Herodes manda matar todos os meninos de Belém com menos de dois anos de idade. Antes que seus assassinos de aluguel comecem o massacre, um anjo aparece a José em sonho e diz: “toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu te avise; porque Herodes há de procurar o menino para o matar”. José, um trabalhador braçal de Nazaré, sua esposa Maria e seu filhinho recém-nascido fogem da violência e de um governo tirânico – como muitos dos refugiados contemporâneos.

Nos dias seguintes ao Roda viva de Bolsonaro, apareceu um novo tipo de fact-checking: o fact-checking bíblico. Jesus foi mesmo refugiado ou isso é fake news inventada pela esquerda que até ontem era ateia? “Jesus foi ‘refugiado’? Até onde se sustenta a fake news de Bernardo Franco contra Bolsonaro?”, perguntava um artigo de Flavio Morgenstern, editor do site conservador Senso incomum: pensando contra a corrente . Morgenstern conclui que Jesus não foi refugiado coisa nenhuma. O Egito, assim como a Judeia, era parte do Império Romano. Jesus, Maria e José se deslocaram de uma região para outra mas permaneceram no mesmo império. Como pode alguém se refugiar dentro do mesmo império que o persegue? Pronto. É fake news! O mesmo argumento foi usado por outros articulistas – alguns dos quais nem são amigos de Bolsonaro e acreditavam estar esclarecendo as massas. Nenhum deles informou se anjos que aparecem no sonho de José também são invenção da esquerda ou se pretendem continuar fazendo fact-checking bíblico: o Mar Vermelho abriu mesmo? cabia tanto bicho na arca de Noé? Golias era mesmo um gigante ou os israelitas é que eram baixinhos?

Mas por que os bolsonaristas se esforçaram tanto para deslegitimar a pergunta de Mello Franco? E mais: por que recorreram a argumentos históricos e geopolíticos, que aparentemente nada tem de religiosos, para afirmar que Jesus não era refugiado? Quando Mello Franco disse que Jesus Cristo era um refugiado, ele mostrou que os conservadores não detém nenhum monopólio sobre o texto bíblico. O mesmo livro que é usado para reafirmar valores retrógrados e preconceitos pode ser fornecer uma linguagem para progressistas dialogarem com religiosos. E isso a direita não quer. Por isso é preciso corrigir as coisas rápido, deixar claro qual é a interpretação correta e, se possível, recorrer a um ou outro argumento geopolítico para mostrar que os progressistas sabem tão pouco de Bíblia quanto de história e política. É curioso que nenhum deles lembra de contexto histórico quando interpreta outros textos bíblicos, como aqueles que falam sobre a submissão da mulher ou condenam a homossexualidade.

Os conservadores se assustam quando alguém encontra algum progressismo na Bíblia . Há muito, eles estão acostumados a terminar sua pregação reacionária com um “porque a Bíblia diz assim” e esperar um “amém”. Mas a Bíblia diz muita coisa. Diz, por exemplo, que o próprio Deus veio ao mundo como um bebê pobre e refugiado. “Também não oprimirás o forasteiro; pois vós conheceis o coração do forasteiro, visto que fostes forasteiros na terra do Egito”, diz Deus aos hebreus no livro do Êxodo . Em períodos eleitorais, candidatos conservadores se saem melhor com o eleitor religioso porque decoraram um ou outro versículo bíblico e sabem falar a língua dos que creem. Os progressistas não sabem. A esquerda desconfia – e muitas vezes despreza – os religiosos, considerados ignorantes e supersticiosos. Esquecem que as igrejas evangélicas são muito populares entre os pobres brasileiros – justamente a população que os progressistas afirmam defender.

Em vez de lamentar que lobos fantasiados de pastores conduzem o rebanho evangélico pela direita, os progressistas podem aprender a língua desse rebanho, falar com ele de igual para igual, sem tentar exorcizar sua fé. Aprender a ler a Bíblia e falar a língua dos religiosos não significar acreditar que o texto bíblico narra fatos históricos. Lembremos que os fact-checkers bolsonaristas deixaram os anjos de fora de sua exegese. Porque eles sabem que o que importa não é se aquelas narrativas são fatos históricos ou não, mas como elas são apropriadas por quem têm fé, como influenciam o pensar e o agir (e o votar) dos que creem. Conhecer a Bíblia pode, por exemplo, fornecer argumentos em favor da proteção aos refugiados, porque o protagonista de toda aquela história também foi um refugiado e sentiu na pele a violência promovida pela aliança político-sacerdotal. E, é claro, conhecer a Bíblia ajudar a desmascarar algumas fake news que circulam por aí. Os conservadores costumam repetir que Deus mandou fogo do céu para destruir Sodoma e Gomorra só porque reprovava as práticas sexuais do povo daquela cidade. O próprio Deus, no livro do profeta Ezequiel, lá pelo meio da Bíblia , conta uma história diferente: “Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera tranquilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre e o necessitado. Foram arrogantes e fizeram abominações diante de mim; pelo que, em vendo isto, as removi dali.” Parece que Deus tem algum interesse em causas progressistas – e que a definição de “sodomita” da Bíblia é um pouco diferente da nossa.

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