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Por que o livro de Luisa Geisler assustou tanto uma cidadezinha gaúcha?

Ao não responder as perguntas que propõe, 'Enfim, capivaras' incentiva os jovens a questionar a realidade onde vivem
Luisa Gleiser: políticos de Nova Hartz alertaram sobre o 'perigo' que representava livro 'Enfim, capivaras' Foto: Divulgação
Luisa Gleiser: políticos de Nova Hartz alertaram sobre o 'perigo' que representava livro 'Enfim, capivaras' Foto: Divulgação

Poucas coisas parecem preocupar tantos os nossos políticos quanto o que as crianças e os adolescentes brasileiros andam lendo: Bolsonaro chacoalhou o livro Aparelho sexual e cia na bancada do Jornal Nacional para denunciar o kit gay; Damares teme que as crianças recebam manuais de bruxaria nas escolas; Doria mandou recolher livros didáticos que falam de sexualidade; Crivella quis censurar títulos que considerou impróprios para crianças na Bienal do Livro do Rio.

Na última segunda-feira (11), foi a vez de um vereador chamado Robinson Bertuol, membro do PSC, alertar sobre os perigos da literatura infanto-juvenil na tribuna da Câmara Municipal de Nova Hartz, uma cidadezinha gaúcha .

O vereador parabenizou o prefeito, a secretária de Educação e diretoras escolares por terem arrancado das mãos dos pequenos novahartenses o livro Enfim, capivaras , de Luisa Geisler, publicado pela Seguinte, o selo jovem da Companhia das Letras. “Para a alegria das crianças e felicidade dos pais, o livro foi retirado de circulação e autora não virá para Feira do Livro”, comemorou Bertuol.

Geisler havia sido convidada a conversar sobre o livro com alunos de três escolas novahartenses, alunos do sexto ao nono ano, de 11 a 15 anos. Na terça-feira (12), ela foi desconvidada porque seu livro continha um “linguajar inadequado” .

Na tribuna, Bertuol disse que o livro estava cheio “coisa de baixo calão”, “vocabulário chulo” e que “o ouvido das nossas crianças não é privada”. Ele preferiu não citar os palavrões que aparecem em Enfim, capivaras , mas, prevendo despertar a curiosidade de alguns vereadores, disse: “depois em off eu passo para vocês”.

Quem ouve o discurso de Bertuol talvez imagine que Geisler escreveu um panfleto terrivelmente escatológico, que criou um punhado de neologismos impróprios e renovou o estoque de palavrões da língua portuguesa. Não é nada disso. Os palavrões de Enfim, capivaras nem são tão interessantes assim.

E sempre que aparecem são interjeições ou xingamentos de adolescente que não ofendem ninguém: “merda”, bosta”, “puta que pariu”, “cacete”, “que se foda” e outros. E “cazzo”, que não sei se conta como palavrão, porque é uma palavra que imigrantes italianos sempre dizem em novelas de época.

Enfim, não é nada que os adolescentes novahartenses não conheçam ou não falem. Aliás, a Chapada da Pytuna, a cidadezinha mineira de 30 mil habitantes onde se passa a história, não deve ser muito diferente de Nova Hartz, com seus 21 mil habitantes. Não tem nada para fazer lá.

A única diversão que os cinco adolescentes protagonistas do livro encontram para uma sexta-feira à noite é rodar de carro pelos arredores da cidade à procura de uma capivara enquanto se empanturram de salgadinhos e bebem cerveja quente, energéticos e vodka saborizada. Parece um livro bem realista, não?

Todos sabem que os únicos divertimentos disponíveis ao adolescente do interior no Brasil são andar de carro pelos limites da cidade com os amigos, falar besteira e beber escondido  ou frequentar os cultos de jovens das igrejas evangélicas. Ou ler (a história de Enfim, capivaras se passa no final da década passada, quando os serviços de streaming ainda não haviam se popularizado e quem quisesse maratonar séries precisava baixar os episódios). Em Nova Hartz não deve ser diferente.

A capivara que os personagens do livro saem para procurar era o bichinho de estimação de Dênis, apelidado de Binho (“é que Dênis soava muito como pênis”). Só que Dênis é um mentiroso compulsivo – ele já disse que visitou a casa do Faustão em Miami – e com certeza inventou a capivara só para contar vantagem.

Quando Léo, Nick, Zé Luís e Vanessa (uma menina de Porto Alegre recém-chegada à Chapada do Pytuna) passam na casa dele para conhecer o bichinho, Dênis/Binho diz ela fugiu – ou melhor, foi roubada. Eles não acreditam e insistem em procurar a capivara só para forçá-lo a admitir essa e outras lorotas.

Pegam o carro de Léo, que por ser filho de latifundiário pode dirigir sem carta e não ser parado pela polícia, e se embrenham por estradas rurais à caça do bicho inventado. Mas o carro quebra no meio do nada e o celular de Léo, um V3 Black (aquele modelo preto que abria e fechada e que todo adolescente queria ter lá pelos idos de 2008), fica sem sinal.

Eles passam a noite vagando pelas entradas à procura da capivara e de ajuda. Bebem, conversam e brigam. Léo, Nick, Zé Luís e Vanessa se alteram narrando a história. Só Dênis/Binho não narra, o que é uma pena. Ok, não daria para confiar em nada do que ele dissesse, mas seria curioso entender como aquela mente embusteira funciona.

Capítulo a capítulo, os narradores-personagens vão confessando seus dilemas adolescentes. Vanessa não é gorda nem magra e dá socos no estômago para espantar a fome. Às vezes, pula refeições. Outras vezes, como uma panela inteira de arroz sozinha. Ela descarta ter um transtorno alimentar porque “é coisa de gente rica”.

Zé Luís é filho da empregada da família de Léo, de quem herda as roupas. A família de Léo também conseguiu para ele uma bolsa de estudos. A mãe insiste que Zé Luís tem “uma dívida” com eles. Zé Luís namora escondido a irmã de Léo. Nick é meio emo. Não sabe se gosta de meninos, de meninas, dos dois ou de nada.

Ela leu na internet sobre assexualidade e “a coisa toda da área cinza”, mas a confusão continuou, porque “rótulos não ajudavam”. E Léo não sabe se fica com a namorada ou com Vanessa. Ele tem umas angústias de menino rico do interior, mas é um cara legal, não é um agroboy.

Enfim, capivaras vai propondo – ao leitor atento, que tem outras preocupações além da pureza vocabular – algumas questões que não se preocupa em responder. “Quando não julgamos, as coisa são sempre a melhor versão delas”, diz Nick.

Justamente por não serem respondidas peremptoriamente, como do alto de uma tribuna, as perguntas propostas se tornam mais ricas, mais vivas. E talvez mais perigosas. E se essas perguntas entrarem na cabeça dos adolescentes que lerem o livro e eles começarem a esboçar respostas possíveis, ou transformar essas perguntas em outras perguntas, mais próximas da realidade em que vivem?

No livro, a confusão sexual de Nick aparece como uma interrogação, não como um problema ou um desvio a ser corrigido. Mas essa “área cinza” onde se desenrola a sexualidade não combina com os discursos que circulam por aí, insistindo que existem só duas cores: azul e rosa?

O livro não fala só de confusão sexual, obviamente. Algumas das questões propostas talvez sejam ainda mais perigosas, porque sugerem tentativas de respostas que ultrapassam o privado e invadem o público.

Nick pergunta a Léo se ele não acha meio errado que a família dele só plante sorgo para alimentar gado quando a Chapada do Pytuna precisa mandar trazer cenoura de Brasília: “cê não pensa nos danos dessa cadeia?”. E se os adolescentes novahartenses inventarem de discutir a distribuição das terras, o uso de agrotóxicos, o que se planta e quem ganha com a colheita? Pior: e se eles começarem a perguntar por que o filho da emprega tem uma “dívida” com os patrões se ele sempre foi um bom aluno? Ou porque só transtornos psicológicos são “coisa de gente rica”?

Essas perguntas podem se desdobrar em outras perguntas e esbarrar em temas desconfortáveis, que muita gente prefere não discutir. Não é uma coincidência curiosa que quiseram proibir um livro sobre uma turma de adolescentes que quer desmascarar um mentiroso?

Enfim, capivaras começa com uma lista dos motivos pelos que Léo, Nick, Zé Luís e Vanessa escolheram ir atrás da capivara inventada de Dênis/Binho.

O terceiro motivo é revelador: “porque a gente quer morar nessa realidade, em que podemos inventar uma história melhor”.

Os político se preocupam tantos com o que os adolescentes leem porque talvez temam que, ao virar uma página, esses jovens se deem conta de que a realidade em que moram pode ser substituída por outra, que dá para inventar (e construir) uma história melhor.

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