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Romance de Jeferson Tenório revela como racismo corrói até as relações mais íntimas

O avesso da pele defende a preservação da individualidade e dos afetos apesar da violência racista
Jeferson Tenório é o primeiro patrono negro da Feira do Livro de Porto Alegre, que mobiliza a cidade desde 1955. Foto: Carlos Macedo
Jeferson Tenório é o primeiro patrono negro da Feira do Livro de Porto Alegre, que mobiliza a cidade desde 1955. Foto: Carlos Macedo

No último ano e meio, uma espécie de tríade de romances antirracistas chacoalhou a literatura brasileira: Marrom e Amarelo , de Paulo Scott, e Torto arado , de Itamar Vieira Junior, publicados no ano passado, e O avesso da pele , de Jeferson Tenório, lançado em agosto. Marrom e Amarelo enfrentou corajosamente a “pigmentocracia” brasileira, que, como o discurso da meritocracia, reforça injustiças e condena que têm a pele escura a posições subalternas, à violência da pobreza. Torto arado insistiu na persistência das relações escravocratas entre nós e lembrou que precisamos urgentemente revisitar nossa história e contá-la outra vez, mas sob a perspectiva daqueles que tentamos excluir dela.

Esse dois romances partem da vida dos personagens — um militante antirracista, negro de pele cara, em Marrom e Amarelo ; descendentes de escravizados que ainda trabalham na terra alheia sem receber pagamento, em Torto arado — para expor a crueldade que rege as relações raciais no Brasil. O avesso da pele parece fazer o percurso contrário: parte da violência racista brasileira para mostrar como ela corrói também as relações afetivas.

O avesso da pele é narrado por um rapaz chamado Pedro, de 22 anos. O pai dele, Henrique, professor de português, é assassinado numa desastrosa abordagem policial, em Porto Alegre. Morto porque sua pele escura foi entendida como uma ameaça. O avesso da pele parte dessa tragédia, que é também social e política, e termina por reivindicar o direito das vítimas da violência racista a preservar a própria individualidade.

Enquanto arruma os pertences do pai morto, Pedro tenta reconstituir a vida dele. O avesso da pele é narrado na segunda pessoa. Pedro se dirige a um “você”, ao pai, como se lhe escrevesse uma longa carta ou quisesse impedir que aquele que acabou de morrer se esquecesse da própria vida. Em capítulos curtos, ele recorda a vida do pai desde a infância. Ao narrá-la, mostra como o racismo acabou por moldar a trajetória paterna, sem que Henrique pudesse resistir, porque o racismo tem o costume de se disfarçar para se intrometer nos cantos mais íntimos da vida de alguém, contaminando todas as suas relações.

Um dos exemplos mais pungentes surge logo no começo do livro. Pedro lembra uma namorada branca que o pai tivera, Juliana, cuja família era adepta de piadas racistas disfarçadas de bom humor e afeto. Henrique logo virou o “negão da família” da namorada e “passou a ser uma espécie de para-raios de todas as imagens estereotipadas sobre negros: pois disseram que você era resistente à dor, disseram que a pele negra custa a envelhecer, que você deveria saber sambar, que deveria gostar de pagode, que devia jogar bem futebol, que os negros são bons no atletismo”. Era como se Henrique não tivesse direito a uma subjetividade própria, que não pudesse ser estereotipada ou arrancar risos dos tios de Juliana.

Já as amigas dela preferiam os estereótipos sobre a sensualidade dos negros. E esses estereótipos não demoram a invadir a vida íntima do casal. “Um conjunto de discursos raciais foi rapidamente transformado em erotismo”, diz o narrador. O racismo deu um jeito de entrar no quarto e, mesmo sozinhos na cama, eles não podiam ignorar o roteiro que descrevia os papéis sexuais que um rapaz negro e uma moça branca deviam interpretar juntos. “Então, sorrateiramente raça ocupou um espaço em duas vidas e vocês nem perceberam. Não havia mais volta”, diz o narrador. “A amor estava condicionado e mediado pela raça.”

É isto o que faz o racismo em O avesso da pele : sorrateiramente ocupa pedaços das vidas dos personagens, sem respeitar nem mesmo os espaços mais íntimos. Talvez seja por isso que, certa vez, Henrique aconselhou Pedro a “preservar o avesso”: “ É necessário preservar o avesso , você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? ”.

Preservar o avesso parece ser lutar pelo privilégio de ter uma vida que possa, pelo menos às vezes, ser despolitizada. De ter um corpo que não é visado o tempo todo, como ameaça ou fetiche. Ao narrar a vida do pai, Pedro tenta recuperar os espaços uma vez colonizados pelo racismo, preservar-lhe o avesso. Mas só se chega ao avesso da pele esfolando-a.

Tenório faz do esfolar que busca o avesso da pele um procedimento literário extremamente bem-sucedido. Ele esfola com as palavras. Com uma linguagem limpa, sem adornos, e com o ritmo calmo dos enlutados, ele vai removendo camadas e camadas de pele, camadas e camadas de violência (das mais explícitas às mais cotidianas), até chegar ao avesso, a esse lugar onde a individualidade, um direito tantas vezes negado a quem é medido pela cor de sua pele, ainda resiste.