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Ruy Fausto: "O país está doente"

Se quiser vencer, Fernando Haddad deve reconhecer a corrupção praticada pelo PT. Um eventual governo Bolsonaro pode reagir mal a manifestações de oposição e ameaçar a democracia, acredita o filósofo
O filósofo, historiador e professor Ruy Fausto Foto: Anna Carolina Negri / Agência O Globo
O filósofo, historiador e professor Ruy Fausto Foto: Anna Carolina Negri / Agência O Globo

1.Qual é sua avaliação das eleições até agora?

O resultado é ruim. Evitou-se a grande tragédia que seria a vitória de Jair Bolsonaro ( PSL ) no primeiro turno, mas no Legislativo a renovação foi ilusória. Substituímos velhos políticos, bons e ruins, por políticos jovens e conservadores, como Kim Kataguiri ( DEM) , Janaina Paschoal ( PSL ) e outros apoiadores de Bolsonaro. É claro que, quando um Eunício Oliveira ( MDB ) perde, nós celebramos. Mas também perdemos Eduardo Suplicy e ganhamos Major Olímpio ( PSL ). A vaga conservadora é assustadora. O país está doente.

2.Dada a composição do novo Congresso, o próximo presidente terá condições de governar?

É triste observar que Bolsonaro certamente teria mais apoio no Congresso que Haddad. Mas isso não é uma razão para baixar os braços. Se Haddad vencer — e isso, embora improvável, não é impossível —, podemos esperar que haja uma recomposição política e que a Presidência de esquerda consiga constituir um esquema que lhe permita governar sem fazer concessões importantes.

3.Quais devem ser as estratégias de Fernando Haddad (PT) para combater Bolsonaro no segundo turno?

Haddad precisa reconhecer que houve, sim, corrupção durante os governos do PT e se dispor a corrigir radicalmente esse erro. Deve deixar claras suas convicções democráticas, afirmar que não tem nada a ver com a Venezuela, embora os dirigentes de seu partido façam pronunciamentos desastrosos de apoio a Nicolás Maduro. Esse ponto é essencial, porque é muito explorado pela direita. Haddad precisa aparecer como candidato autônomo e independente, mesmo se apoiado por Lula. Se Lula tem muito prestígio, a rejeição ao nome dele também é muito grande. Haddad também precisa fazer um trabalho de neutralização do discurso e da política bolsonaristas. Desmitificar sua política de segurança — que na realidade é de bangue-bangue — e desmascarar suas calúnias contra a esquerda e suas invenções como “ideologia de gênero”. Deve mostrar também como a famosa base religiosa de Bolsonaro se fundamenta em organizações com fins lucrativos bem definidos — praticando um “comércio da religião” — e que ele, de cristão, tem muito pouco. É inútil pretender fazer tratados de paz com Bolsonaro. O importante não é uma campanha de paz, mas, sim, uma campanha que fale a verdade. Nem tudo está perdido. É preciso organizar a resistência.

4.Haddad deve se comprometer com as reformas?

Não creio que Haddad deva se lançar em um discurso de elogio do mercado ou fazer concessões às contrarreformas dos patrões e da direita. O programa de reformas — não contrarreformas — de Haddad é bem moderado, talvez até moderado demais. Ele propõe mudanças na legislação tributária, mas não ficou claro se vai até a alteração das alíquotas. Penso que ele deveria dizer, de vez em quando, que não é contra o mercado enquanto tal. De qualquer forma, ele terá contra si algumas forças do mercado, mas, se optar por um discurso racional, sem sair propriamente de seu programa, talvez tenha o apoio de outras.

5.Geraldo Alckmin teve apenas 4,76% dos votos. Como explicar o encolhimento do PSDB?

O PSDB foi vítima de seus erros. O partido se engajou no impeachment de Dilma Rousseff, que abriu uma “caixa de pandora”. Mais profundamente, talvez, a crise de legitimidade do partido hegemônico da esquerda, o PT, veio acompanhada de uma crise semelhante na direita. Se o PT não convence mais, a direita tradicional também não convence. Formou-se um vazio que a extrema-direita, alimentada pelo contexto político mundial, veio a ocupar. Ainda não desapareceu o espaço a ser ocupado por um partido de centro-direita, que no futuro talvez possa se reorganizar.

6. Bolsonaro conquistou o voto útil antipetista. Como a crise da esquerda fortaleceu o candidato da direita?

A esquerda hegemônica se enfraqueceu por causa da corrupção, de certas ambiguidades em seu projeto e porque se lançou numa campanha excessivamente marcada pela ideia da “substituição” do candidato. O discurso tradicional da esquerda foi cedendo seu lugar para o discurso de extrema-direita, arquirreacionário em tudo e sem papas na língua. O PT virou um verdadeiro demônio. Há os que reconhecem que Bolsonaro é tudo o que há de pior, mas que se dispõem a votar nele para evitar a volta do PT. Uma autocrítica séria por parte do PT, e de seu candidato, teria neutralizado grande parte desses efeitos.

7.Como explicar a ascensão eleitoral da direita? Já podemos falar em bolsonarismo?

O bolsonarismo é um fenômeno que se aparenta aos populismos de extrema-direita que vicejam pelo mundo. São movimentos neoliberais e antidemocráticos, que ainda se inscrevem numa agenda antiambientalista, racista e de oposição a movimentos identitários, a começar pelo feminismo. O modelo é o de uma extrema-direita que não é propriamente fascista, mas que tem a característica de adotar bandeiras arquirreacionárias em todos os planos — é anti-igualdade, antiliberdade, antidefesa do meio ambiente, antifeminista e racista. Seu mantra anticomunista é muito forte e virulento. Quando Bolsonaro e os seus falam de “comunismo”, não nos enganemos: eles não visam propriamente ao comunismo, que, se não desapareceu, é muito marginal no mundo atual. Na tradição da extrema-direita, Bolsonaro e os seus chamam de “comunistas” os sociais-democratas, gente de centro-esquerda, socialistas-cristãos, comunistas mesmo, centristas socializantes de todo tipo. Na realidade, ao fazer essa acusação, Bolsonaro visa de fato às políticas de justiça social. Bolsonaro não luta contra o comunismo. Luta contra a justiça social. Luta pela injustiça: pela desigualdade sem limite, pela culpabilização dos pobres e pelo liberalismo desenfreado, cujos frutos se conhecem. Isso só para falar de seus projetos econômicos.

8.A democracia brasileira corre risco?

Corre risco, sim. É difícil prever o que seria um governo Bolsonaro, mas podemos ver algumas coisas. Ele nomeará um ministério majoritariamente militar. Sua política conservadora se manifestará em diversos aspectos da vida, como na educação, na Justiça e nas liberdades democráticas. Haverá provavelmente resistência e choques. Não nos esqueçamos de que ele tem uma taxa de rejeição que não está longe dos 50%. O governo Bolsonaro reagirá às manifestações de descontentamento enveredando por um processo que não sabemos onde pode terminar.

9.Qual deve ser a prioridade do próximo governo?

Qual governo? Só posso falar de um governo Haddad. Não tenho planos para um governo Bolsonaro. Eleito, Haddad deveria pensar em revogar algumas das decisões desastrosas de Michel Temer, como a PEC do teto de gastos e a reforma trabalhista. Depois, ou ao mesmo tempo, pensar no reforço do SUS, muito debilitado nos últimos tempos. Ele também deveria anunciar muito cedo um plano nacional de luta contra a grande criminalidade. Criar talvez um novo ministério com essa finalidade, centralizar o trabalho das instâncias atuais de luta contra isso. É urgente dar uma primeira resposta séria ao problema. Em última análise, a origem da criminalidade está na desigualdade. A solução via combate da desigualdade é a médio e longo prazos e não exclui a repressão ao banditismo e ao crime organizado.

Eleitores festejam o resultado do primeiro turno, em frente à casa de Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro. Para Fausto, o bolsonarismo é um fenômeno de extrema-direita, como vários em voga no mundo Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Eleitores festejam o resultado do primeiro turno, em frente à casa de Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro. Para Fausto, o bolsonarismo é um fenômeno de extrema-direita, como vários em voga no mundo Foto: Guito Moreto / Agência O Globo