Época cultura

Um réquiem para as grandes salas

É a música que serve ao espaço ou o espaço que serve à música?
Metropolitan Opera House, em Nova York, em uma noite de 1955, período em que ainda atraía grandes públicos Foto: Authenticated News / Agência O Globo
Metropolitan Opera House, em Nova York, em uma noite de 1955, período em que ainda atraía grandes públicos Foto: Authenticated News / Agência O Globo

Existem alguns livros que são pontos de partida ideais para temas amplos: vêm à mente o monumental Oxford history of western music , de Taruskin, e os tratados sobre instrumentação de Berlioz e Strauss. O livro da historiadora de arquitetura Victoria Newhouse Site and sound Lugar e som , ainda sem edição em português — é um desses. Ele alcança o status de leitura essencial tanto pelo foco quanto pelo escopo de estudo, narrando as origens das salas de concerto nos antigos anfiteatros greco-romanos, passando por seu florescimento nas ornamentadas casas de ópera europeias barrocas, até chegar a suas mais importantes e modernas encarnações. Aborda, ainda, o papel das salas de concerto tanto como campos de batalha ideológicos quanto como verdadeiros testamentos de nossa mudança de atitude em relação à arte e, mais especificamente, à música clássica. Seu livro delineia cuidadosamente os desafios, sucessos e fracassos das históricas e, especialmente, modernas casas de ópera ou salas de concertos. Com o sucessor Chaos and culture Caos e cultura , também sem edição em português —, os livros de Newhouse deveriam ser essenciais para qualquer pessoa responsável pela concepção e criação de uma nova sala de concerto ou de um novo centro cultural em qualquer lugar do mundo.

Suas obras fazem um levantamento das lições que a experiência nos oferece. O mais interessante é que elas também abordam alguns dos tópicos que o mundo da música clássica, seja por relutância, seja por descuido, não discute. E esses parecem ser exatamente os assuntos mais importantes sobre os quais poderíamos conversar. Por exemplo, segundo um trecho do livro Site and sound :

Pessoas a pé, e não em automóveis, são agora o foco do planejamento dos centros das cidades. Praças históricas e ruas comerciais densas tornaram-se o modelo para zonas exclusivas para pedestres no centro de cidades ao redor da Europa, e a moda está começando a pegar nos Estados Unidos. Urbanistas perceberam que superquadras e praças grandes e rebaixadas junto a prédios monumentais reduziram a intensidade da vida nas ruas, essencial para um ambiente urbano animado. [...] Em vez de situar várias instituições culturais em um só lugar, projetos contemporâneos retomam a prática antiga de colocar salas de concerto e casas de ópera em partes diferentes da cidade — como o Metropolitan Opera House e o Carnegie Hall (William B. Tuthill, 1891), em Manhattan, e o Royal Opera House (Edward Berry, 1858) e o Royal Albert Hall (Francis Fowke e H.Y.D. Scott, 1871), em Londres.

Suas observações perspicazes são oportunas. No espaço de uma página, Newhouse aponta dois grandes problemas que quase nunca aparecem no radar de reuniões que discutem como seriam as salas de concerto de amanhã — mas os novos urbanistas conhecem bem essas questões — e sabem exatamente o que fazer em relação a elas. O fato é que instituições de música clássica nos Estados Unidos ignoram completamente esses temas. Por isso a análise certeira de Newhouse e o desafio direto que ela propõe são tão extraordinários. Conversamos em sua casa em Manhattan começando com algumas observações sobre o Metropolitan Opera de Nova York, conhecido apenas como Met.

LPR X: ACME performs the music of Jóhann Jóhannsson Foto: Sachyn Mital
LPR X: ACME performs the music of Jóhann Jóhannsson Foto: Sachyn Mital

VICTORIA NEWHOUSE O primeiro veículo que anunciou os problemas financeiros do Met foi o New York Times . Eu conheço Peter Gelb (diretor do Met) e escrevi para ele dizendo que a única maneira de resolver esses problemas seria derrubar aquela casa, que tem quase 4 mil lugares — um pouco menos que 4 mil —, e construir outra com metade do tamanho ou menos, porque você nunca vai lotar aquele lugar hoje em dia, mesmo em Nova York. Vou cada vez menos ao Met e cada vez mais a lugares como o National Sawdust, o Poisson Rouge, o Roulette — e eles são, como você sabe, locais bem pequenos, todos em Nova York. Acho que o National Sawdust tem mais ou menos 200 lugares, talvez até menos... Enfim, é extremamente pequeno. O Roulette deve ter cerca de 400. Poisson Rouge, não sei dizer... Estou convencida de que essas salas de concerto enormes — qualquer uma com mais de 500 lugares, eu diria — são coisas do passado. Não acho que haja público para elas e esse é um dos problemas. Odeio ir ao Geffen, antigo Avery Fisher Hall (no complexo do Lincoln Center, em Nova York) . Acho pouco acolhedor, é enorme. Não há qualquer intimidade naquele lugar.

ANDREW BALIO Fico feliz em ouvir isso, porque, em seu livro, você documenta as maiores salas de eventos, mas o que fica claro em sua obra é que o que torna a música clássica especial é a intimidade.

VN Com certeza.

AB E o que falta na vida das pessoas é a intimidade. Passamos muito tempo nesses grandes edifícios — shoppings, centros empresariais monstruosos, lojas enormes. Música clássica deveria unir as pessoas socialmente, de um jeito mais íntimo. Estamos querendo fazer com que toda a experiência de um concerto, desde o começo, seja menor. Na verdade, trabalhamos com uma iniciativa chamada Slow Music. É sobre diminuir a escala, trazer a música clássica até a escala humana.

VN Concordo plenamente. No Geffen anunciaram que um arquiteto e um designer de interiores vão renovar totalmente o lugar ou derrubá-lo e começar do zero.

AB Eles não têm permissão para demolir porque é patrimônio histórico agora. Vão ter de reformar.

VN Eles já fizeram isso uma vez, reformaram. Deveriam construir, no mínimo, duas salas de concerto menores no lugar. Não existe mais mercado para essas grandes salas.

Claro, me impressiono novamente com a visão de Newhouse. Num mundo dominado por corporações internacionais, idas diárias ao trabalho em avenidas com dez faixas e ritmo frenético e constante de nossa tecnologia de todo dia, desejamos por algo pequeno, humano, conhecido e íntimo. O hotel butique, o restaurante farm-to-table (da fazenda à mesa), os negócios locais: isso tudo está voltando à moda. E é a coisa mais fácil do mundo entender o porquê. Estamos procurando por um antídoto para esse nosso mundo gigante, automatizado, movido por números. A música clássica é o remédio perfeito, mas não se continuarmos a apresentá-la dessa forma. Não podemos esperar que as pessoas entrem em salas do tamanho do Walmart, com um número de assento atribuído a elas como única forma de identificação, e então sentem ombro a ombro com estranhos que nunca conhecerão, sem uma mínima esperança que alguém lhes traga uma taça de vinho ou um café — ou até sorria para elas — por no mínimo algumas horas. Não é à toa que nossas salas de concerto estão vazias.

AB Como você se sente quando vai a um auditório com metade da lotação?

VN Acho bem deprimente. Não vou publicar uma imagem de uma sala de concertos vazia em meu livro. Não vou publicar uma casa de ópera vazia. Acho muito inquietante ver a foto de um lugar desses sem ninguém. Sinto-me do mesmo jeito quando vou a um local de eventos e está metade vazio. É triste.

AB Com certeza. Essa é a frustração de nosso trabalho. Eles dizem que está metade vazio e que, de alguma maneira, falhamos, em vez de dizer que o tamanho enorme do lugar é arbitrário. No último século, ao querer fazer tudo maior, demos uma abordagem industrial a concertos, como estádios de futebol. A sinfonia não funciona como o futebol. Eles criticam a arte em si porque temos metade da lotação. Nós dizemos que o lugar é grande demais.

VN Como vocês lidam com o problema — se você tem um local menor — de remuneração dos músicos? Como equilibram isso?

AB Geralmente, em uma orquestra nos Estados Unidos, apenas um terço dos fundos operacionais é proveniente da venda de ingressos. Dois terços vêm de doações. Então o imperativo econômico consiste em repetir a venda de ingressos e atrair fundos filantrópicos. Nós estamos tentando incentivar a construção de salas de concerto menores, como você disse, e valorizar mais a experiência do concerto — se as pessoas dão mais valor, vão pagar e doar bem mais. Mas, mesmo se aumentarmos o preço do ingresso dos melhores assentos, sempre reservaremos alguns para pessoas de renda baixa — que podem ser estudantes de música, jovens. Essa é uma estruturação de preços que existe desde sempre. Há um método, os ricos sabem que estão compensando os custos e todo mundo fica feliz. Digamos que a demanda aumente, o que seria maravilhoso: você tem uma sala pequena, então faz mais concertos. A maioria das orquestras não toca em concertos suficientes — ou não tanto quanto conseguiria tocar — e gostaria de poder oferecer mais concertos que vendessem. Em nosso trabalho no FSI (Future Symphony Institute) , focamos na diferença entre preço e valorização. Acredite se quiser, as orquestras estão tentando diminuir o preço dos ingressos, achando que esse é o fator determinante. Para além de itens essenciais, as coisas não funcionam assim. Quando ver um concerto custa menos do que ver um filme, em algum momento as pessoas passarão a valorizar menos um concerto do que um filme.

VN Existem vários concertos gratuitos em Nova York.

AB O que isso faz? Talvez ensine às pessoas que o valor de um concerto é zero. Você tem umas poucas pessoas ricas que pagam porque creem que é um bem público.

Nos últimos anos, cadeiras vazias são uma cena comum nos espetáculos no Metropolitan Opera House, em Manhattan Foto: Roy Rochlin / Agência O Globo
Nos últimos anos, cadeiras vazias são uma cena comum nos espetáculos no Metropolitan Opera House, em Manhattan Foto: Roy Rochlin / Agência O Globo

Esse é um modelo 100% baseado em fundos filantrópicos. Tudo vai muito bem até o filantropo partir para outra. O fato é que as orquestras necessitam de um modelo melhor, mais resiliente — baseado, até certo ponto, num entendimento realista das forças do mercado e, mais ainda, da natureza humana. Elas precisam de algo que permita que se sustentem — ganhem a própria vida — o máximo que puderem, resguardando-as contra os caprichos filantrópicos e os tipos de controle de governo hierárquico e de pressões populistas que ameaçam as orquestras europeias. Vemos a necessidade de pesquisas cuidadosas e de aplicação de princípios mercadológicos testados e comprovados para o gerenciamento de sinfonias sem fins lucrativos — e de uma reavaliação dos princípios ideológicos predominantes que fingem ser princípios de negócios. Mas muito do que tornará as orquestras viáveis depende de previsão e controle, necessários para que salas de concerto caras e difíceis de manter não sejam um fardo. E Newhouse pensou muito sobre isso.

VN Ninguém pensa além do espaço físico. Não pensam em programação, manutenção. Meu último livro, Chaos and c ulture , aborda esse problema. Enquanto escrevia este livro (Site and Sound) sobre casas de ópera e salas de concerto, fiquei ciente de como é incrivelmente complicado esse processo de construção de um espaço para música, com toda a questão da acústica, circulação — no sentido de quantas pessoas entram e saem — e outras. Então escrevi um livro sobre a construção de um edifício cultural em Atenas, na Grécia. É um projeto incrível. Custou mais de US$ 800 milhões e é completamente financiado por uma fundação privada: a Fundação Niarchos. Trata-se de uma casa de ópera pequena — 400 lugares — e de uma biblioteca nacional, da qual eles precisavam desesperadamente porque o país tem tesouros extraordinários — manuscritos medievais e bizantinos. Eles sofrem do mesmo problema porque o acordo que fizeram com o governo grego antes da crise econômica global foi que, no dia em que terminassem, passariam a chave para o governo, que cuidaria do lugar. Naquele momento, em 2007, o governo disse que sim, que ficaria satisfeito — eles estavam muito contentes por ter um prédio muito caro, muito bonito, projetado pelo arquiteto Renzo Piano. Ficariam felizes em tomar conta do local. Mas muitas coisas aconteceram de lá para cá, e eles estão lisos. É o mesmo problema de qualquer outro lugar: têm um prédio lindo, mas não têm dinheiro para gerenciá-lo. Claro que a fundação vai intervir e ajudá-los, mas não acho que esteja preparada para fazer isso para sempre.

AB Nossas instituições culturais esperam a demanda pelas programações e pelos recursos para financiar tudo — mas o oposto pode acontecer. É isso que está arruinando nossa alta cultura. As grandes artes estão presas a esses custos estruturais, e nós nunca, nunca saímos desse poço.

VN Dediquei um capítulo aos aspectos principais de uma construção desse tipo de estrutura. Na verdade, minha inspiração para o livro, o porquê de eu tê-lo escrito, foi alertar os membros de organizações culturais sobre seus problemas: elas são muito difíceis, levam tempo, são caras e complexas. Acho que muitos desses conselhos de diretores entram de cara no projeto sem ter ideia de onde estão se metendo.

AB É exatamente isso o que acontece. Eles acabam acatando a ideia de “experts”. Outras pessoas interferem — geralmente arquitetos, que têm pautas e querem fazer grandes declarações, ou então clientes, querendo que o lugar seja tudo para todo mundo, algo que geralmente não é possível. O técnico de som costuma ser a última pessoa a ser consultada. No caso do Disney Hall, infelizmente, Yasuhita Toyota, o especialista em acústica, não pôde “apropriar-se” do interior do lugar, do espaço do concerto. De acordo com os músicos, não ficou muito bom, acusticamente falando, ainda que seja visualmente bonito. Isso acontece muito, e é o arquiteto quem cria todos esses problemas. É um desafio para um filantropo local, por exemplo, que vai colocar US$ 10 milhões no pontapé inicial de um projeto de sala de concerto. Primeiro ele tem de dizer sua estratégia. E não há nada — além de seu livro, na verdade — que faça um apanhado das informações, destilando-as em conhecimento a partir de lições aprendidas. Em vez disso, a informação é dada a eles com todos esses interesses diferentes por trás — normalmente, interesses declarados. É isso que torna tão incrível o que você está fazendo.

VN Você deve gostar mais do último capítulo, no qual comparo a construção do Centro Cultural em Atenas, que ocorreu sem grandes dificuldades, praticamente dentro do prazo — claro, atrasou um pouco, sempre atrasa, mas foi quase pontual, passou muito pouco do orçamento —, com outros projetos, como a Philharmonie de Paris. Como você sabe, essa atrasou muito, passou muito do orçamento. Outro é o Elbphilharmonie, em Hamburgo, da parceria Herzog & de Meuron. Também tem aquele negócio de Peter Eisenman em Santiago de Compostela, na Espanha. Faço essas comparações para mostrar como aquilo foi excepcional. Via de regra, acontece o oposto. Mas esses caras em Atenas, tendo passado por isso tudo de forma tão bonita, agora têm os mesmos problemas que todos os outros.

O Elbphilharmonie em Hamburgo, Alemanha, é um dos mais belosexemplos da arquitetura contemporânea das salas de concerto Foto: Iwan Baan / Divulgação
O Elbphilharmonie em Hamburgo, Alemanha, é um dos mais belosexemplos da arquitetura contemporânea das salas de concerto Foto: Iwan Baan / Divulgação

Inclusive, o que me levou a trabalhar para o FSI foi esse entendimento crescente de que muitos dos problemas pelos quais as orquestras sinfônicas passam são compartilhados não só entre elas, mas com outros negócios, instituições e atividades em áreas distintas e em tantos lugares diferentes. Muitos erros se repetem sem necessidade porque as lições que deveríamos ter aprendido não foram coletadas e disseminadas — em primeiro lugar porque investimos demais nelas para chamá-las de erros e porque muitos de nós não pensam em olhar para fora daquilo que se tornou nosso espaço. Meu trabalho começa na procura de experts, muitas vezes de fora, que examinam esses problemas novamente — e muitas vezes em áreas aparentemente incompatíveis. Victoria Newhouse foi um dos primeiros achados, e ela tem pensado em algumas dessas questões há muito tempo, como parte de algo muito maior. Isso faz com que seu trabalho seja excepcionalmente importante.

VN Há muito no que pensar. Lugares alternativos como o Poisson Rouge ou o National Sawdust: esse é o futuro.

AB Pequeno, íntimo, com uma escala menor. Estamos presenciando essa contração em tantas coisas. Todas que tentamos aumentar exageradamente não se sustentam. Temos de trazer as pessoas de volta. Na verdade, música clássica começou na música de câmara. O tamanho da orquestra sinfônica como uma expressão da música clássica teve seu auge no fim do período romântico, no começo do século XX. Música de câmara, recital de piano — eles têm sido afastados para outros lugares. Tornaram-se seu próprio mundo separado. Eu gostaria de juntá-los novamente para que uma sala de concerto com 1.000 lugares possa ter diferentes coisas todo dia da semana. O que é mais importante: vamos aprimorar a profundidade da experiência de nossa audiência. As pessoas poderiam se associar à sala de concertos local e aproveitar essa dieta constante de música, aprendendo nosso vasto cânone, num ambiente com uma hospitalidade de alto padrão — onde não são apenas mais uma face na multidão, mas alguém em uma reunião íntima entre amigos. É isso que estamos imaginando.

*ANDREW BALIO, TROMPETISTA DA ORQUESTRA SINFÔNICA DE BALTIMORE, NOS ESTADOS UNIDOS, É FUNDADOR E DIRETOR EXECUTIVO DO FUTURE SYMPHONY INSTITUTE, UM THINK TANK DEDICADO A DISCUTIR AS DIFICULDADES E O FUTURO DAS ORQUESTRAS SINFÔNICAS MUNDO AFORA.