O alívio reina no Botafogo após a classificação — com emoção — às quartas de final da Libertadores, definida apenas nos instantes finais da partida contra o Palmeiras, no Allianz Parque. Desde que chegou ao Brasil, Artur Jorge tornou a equipe muito mais estável em relação àquela que sofria uma profusão de gols nos fins de partidas, mas o empate por 2 a 2 na quarta-feira fez o torcedor encarar de frente o abismo dos traumas recentes, que têm como marco a virada por 4 a 3 sofrida no Brasileirão do ano passado.
Diferentemente daquela vez, porém, o Botafogo saiu vencedor, passando por um importante teste de alta dificuldade fora de casa e, sobretudo, dando a impressão de que fechou um ciclo de traumas justamente contra o algoz que instalou tantas dúvidas e questionamentos no clube, mesmo que isso tenha custado um pico de estresse, e muita tensão na torcida, um 12º jogador que nunca deixou de acompanhar.
— A classificação renovou a confiança. Os jogadores vão com maior incentivo para os próximos jogos. O trauma vai ficando no passado. Não se pode ficar carregando as derrotas nos ombros para sempre — analisa Anna Lucia Spear King, psicóloga e doutora em Saúde Mental do Instituto Delete/UFRJ. — Como já se classificaram e estão passando por uma fase melhor, vão ganhar confiança.
Não fosse a mão de Gustavo Gómez, que invalidou o que seria o terceiro gol alviverde e forçaria os pênaltis, a conversa seria diferente. A classificação fez com que muitos jogadores extravasassem no campo do adversário, muitos carregando uma memória que sequer lhes pertence.
O único titular que tinha esse status na derrocada de 2023 foi o volante Marlon Freitas, validando a renovação do elenco que foi conduzida em poucos meses e trouxe jogadores sedentos — assim como o técnico português — por mostrar serviço e conduzir um grupo com muito potencial ao caminho dos títulos.
Ao mesmo tempo, discursos conflitantes mostram resquícios de uma perturbação que pode continuar pairando em General Severiano, principalmente nas falas de Tiquinho, remanescente, e Savarino, contratado este ano.
— Não passou filme de 2023. Já superamos, não tem nada a ver mais — disse o centroavante. — Saímos um pouco frustrados, não tinha que acabar o jogo assim — ponderou o venezuelano.
A linha tênue entre a classificação heroica e o flerte com uma nova tragédia mexe com os nervos, principalmente em um clube que não vence um título de expressão nacional ou internacional desde o Brasileirão de 1995, e vive um incômodo lastro nestas três décadas. A memória institucional também atinge os atletas.
— Há propensão a um estado emocional de intranquilidade e insegurança, e o Botafogo teve um ensaio do trauma de 2023,uma possibilidade de repetição do naufrágio coletivo. O apagão emocional é preocupante — explica João Ricardo Cozac, psicólogo do esporte e presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte. — Imagino que a equipe esteja com uma sensação um pouco contraditória: alívio por não ter sofrido a virada e medo, porque parte do fantasma mostrou estar vivo.
O Botafogo segue na liderança do Brasileirão, e visitará o Bahia neste domingo, às 16h. Será um desafio à altura para se revigorar e manter a ponta da tabela. Já na Libertadores, o adversário será o São Paulo, um novo confronto de 180 minutos que só se inicia no mês que vem, momento em que o grupo deverá trabalhar para manter a cabeça no lugar.
— Foi um enorme sinal de alerta e que deve ser constatado, trabalhado — afirma Cozac. — A pior maneira de se tratar o que acontece com o Botafogo é não conversar sobre o trauma, esconder o que foi vivido. Negar toda a situação só aumenta ainda mais a possibilidade da repetição da tragédia.