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Esportes

Maracanã 70 anos: 'A ideia do estádio inclusivo foi sepultada', afirma Luiz Antonio Simas

Depois de se dedicar a obras sobre samba e cultura popular, Simas finaliza "Maracanã: uma biografia" sobre as tensões e encontros no maior palco do futebol brasileiro
Torcedores boicotam a arquibancada e lotam a geral em protesto ao preço dos ingressos no Maracanã, em 1984 Foto: Hipólito Pereira
Torcedores boicotam a arquibancada e lotam a geral em protesto ao preço dos ingressos no Maracanã, em 1984 Foto: Hipólito Pereira

O carioca Luiz Antonio Simas finalizou seu mais recente livro "Maracanã: uma biografia", mas a pandemia retardou o lançamento da obra, editada pela Mórula Editorial. Fruto de quatro anos de trabalho, é uma pesquisa minuciosa sobre a história social do estádio: da ocupação do entorno do Rio Maracanã às mudanças pós-reforma para a Copa-2014, passando pelas transformações na sociedade carioca do século passado. Na entrevista a seguir, Simas dá detalhes de seu livro na abertura da série especial do GLOBO sobre o Maracanã, que completa 70 anos na próxima terça-feira (16).

Como era a região do Maracanã antes do estádio?

Era uma região marcada pelas revoadas dos maracanãs (uma espécie de papagaios), que pertenceu aos jesuítas antes da expulsão no fim do século XVIII – tanto que, durante as obras do estádio, alguns operários diziam ver fantasmas de padres e franciscanos, segundo relatos de jornais da época. A partir da chegada da Corte, aquela área começou a se desenvolver, porque é relativamente próxima de São Cristóvão, onde a Corte Joanina ficou.

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Quando começa a receber esportes?

Foi quando o Rio começou a ter uma atração por corrida de cavalo, no fim do século XIX. Onde está o estádio era o Derby Club, que depois fez uma permuta com a Prefeitura, que ficou com o terreno, enquanto as corridas foram para o Jardim Botânico, onde é o Jockey Club. Quando passou para o poder público, ficou abandonado. Era uma espécie de depósito do Exército. Essa troca, inclusive, gerou controvérsias, porque a imprensa considerava que o poder público tinha perdido, ao entregar uma região às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas para ficar com aquela área, uma região que foi meio esquecida.

O escritor Luiz Antonio Simas, que finalizou o livro "Maracanã: uma biografia" Foto: Ana Branco / Agência O Globo
O escritor Luiz Antonio Simas, que finalizou o livro "Maracanã: uma biografia" Foto: Ana Branco / Agência O Globo

E quando começou a ser cogitada para receber o estádio?

Na década de 1930, o governo do Getúlio Vargas pensou em um complexo esportivo inspirado no Foro romano do Mussolini. O governo pensava no estádio inserido num complexo esportivo maior. Mas o projeto não foi adiante. Ele volta à baila quando o Brasil se candidata a sediar o Copa de 1950. E teve muito debate se o estádio deveria ser construído ali. Havia quem preferisse aumentar São Januário, do Vasco. Quem achava que o estádio deveria ser em Jacarepaguá, como o Carlos Lacerda, então vereador. O Ary Barroso, que também era vereador, foi um grande entusiasta, um dos fundamentais para o Maracanã ser onde é, ao lado do jornalista Mario Filho.

Por que defendiam ali?

A região do estádio foi pensada para ser acessível a vários pontos da cidade, perto da linha férrea, para facilitar o deslocamento dos torcedores. Ele está na entrada da Zona Norte e, seguindo a reta, chega ao Centro. Está perto da Zona Sul, não está longe da região portuária. O Maracanã foi pensado para ser central.

E qual impacto para a sociedade carioca?

O Maracanã, do ponto de vista simbólico, talvez tenha sido a representação mais forte, ao lado das praias, da ideia de uma cidade de encontro. O estádio ocupava esse lugar simbólico do encontro, da inclusão, da possibilidade, guardadas as enormes diferenças sociais que existiam. Ele tinha uma coisa muito peculiar até na maneira em que foi projetado. Ainda que não fosse igualitário, ele era inclusivo.

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Como?

O Maracanã foi projetado de forma que dividia o torcedor. Aqueles com poder aquisitivo mais baixo, iam na geral, que era uma área que apresentava problemas para enxergar o jogo. Você tinha arquibancadas, que pegava classe média e até a mais baixa que juntava dinheiro para ir ao jogo. As cadeiras, mais elitistas, até chegar às cativas. Todas as classes sociais estão no Maracanã. Ele foi construído num momento que tinha esse projeto de Brasil, que se pretendia grande e inclusivo. Esse Maracanã entrou em colapso. Essa ideia de estádio inclusivo – ainda que não igualitário –, ela foi sepultada.

Qual era o papel da geral, que deixou de existir com a modernização?

Eu sempre tenho um certo cuidado para não cair na romantização do precário. Ao mesmo tempo, existe algo que o geógrafo Milton Santos chamava de sabedoria da escassez. Diante de uma circunstância de escassez, você cria modo de vida, cria alternativa. A geral dificultava a visão do campo, ao mesmo tempo, o geraldino construiu outra relação com o jogo, que passava, por exemplo, até sobre performance. Era muito comum geraldinos irem fantasiados para o jogo, era comum ter a cultura da torcida geraldina. Muitas vezes, para o geraldino, o que menos interessava era ter uma visão precisa do jogo. Me parece que o geraldino tem um pouco disso: o jogo não é só visto. É percebido, porque tem som, cheiro, você sente o jogo.

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O que muda com a modernização do estádio para a Copa-2014?

As arenas são sintomas do país e da cidade. Elas são pensadas em uma dimensão que o futebol virou um produto em que o torcedor perde espaço para o consumidor. Você pensa o estádio como se ele fosse um shopping, um conjunto de lojas e o jogo passa a ser um detalhe. É como se o futebol tivesse se afastando da ideia de ser um evento da cultura para ser engolido pela cultura do evento. AÍ acontece isso: a ideia de um futebol como produto, com interesse no consumidor.

E qual a reação disso?

É um jogo complexo. Se por um lado você tem uma tentativa de elitização, arenização da cidade, por outro tem uma reação, porque as torcidas vão tentando se apropriar do novo estádio. Hoje vejo manifestação de uma turma que gosta de pensar torcida de forma mais inclusiva, democrática. Vejo uma garotada com perspectiva que futebol é política, que não consegue desvincular o futebol do bairro, da cidade, do país. Esse jogo não acabou. O estádio sempre foi espaço de disputa.

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