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Por João Máximo

Começar por Pelé qualquer lista dos maiores gênios do esporte em todos os tempos é quase uma declaração de princípios. Com três títulos em quatro Copas do Mundo, seu sucesso é incomparável. Os 1.282 gols marcados por ele são um recorde que provavelmente jamais será superado. No futebol, nenhum outro entrou na História tão jovem e desconhecido para sair dela tão grande e celebrado. Numa palavra, Rei.

Talvez seja melhor compará-lo a um mago, um feiticeiro, um bruxo, e não a um soberano. Os que o vimos em seus mais de 20 anos de carreira certamente nos lembramos não só do que Pelé fazia com a bola nos pés, mas de como o fazia. Dribles, passes, tabelas, noção de espaço, antevisão de jogo, gols, cada jogada sua tinha algo de nunca visto, como se inventado ali, por ele, naquele instante, truque a surpreender companheiros e adversários, técnicos e torcedores, mágica a reinventar o próprio futebol.

É o que nos faz entender o arrebatamento poético de Carlos Drummond de Andrade: “Difícil não é fazer mil gols como Pelé, mas um gol como Pelé”. É não achar exagerado o entusiasmo de craques como o húngaro Ferenc Puskas: “Eu me recuso a considerar Pelé um simples jogador de futebol”. Ou estranhar a rendição de um jornalista e escritor como o escocês Hugh McIlvannery: “Estou convicto de que existe entre Pelé e Deus uma relação pessoal mais íntima do que a do comum dos mortais”.

É o que nos leva, ainda, a assinar embaixo a conclusão do belga naturalizado americano Keith Botsford, professor emérito da Universidade de Boston, que veio buscar no Brasil conhecimento que ajudasse seus pares a conhecerem os mistérios do soccer, e foi ver o Santos jogar em Vila Belmiro: “A capacidade de criar situações, um gol, um lance perfeito, que nem os companheiros de equipe esperam (em contraposição às vantagens obtidas quando apenas uma das situações acontece), é o que distingue o gênio do futebol. É exatamente como uma repentina combinação de palavras, pensamentos e sentimentos, que cria a verdadeira poesia. Para o escritor, a linguagem é tão obstinada quanto a mais teimosa jogada. Um Pelé, por conseguinte, é para o futebol o que Shakespeare foi para a poesia: depois de sua passagem, a arte, o jogo, nunca mais serão os mesmos.”

É verdade que o Rei deve a esse poder mágico a unanimidade que o coroou, mas é verdade, também, que a dívida se estende às três Copas do Mundo ganhas. Mas não seria mais correto incluir a quarta? Afinal, parte da grandeza do craque está em como ele superou — lenta, mas bravamente — a dura decepção sofrida em 1966, na Inglaterra, além dos problemas extracampo que enfrentou: fracasso nos negócios, cobrança dos que esperavam dele um posicionamento político e, mais que tudo, o desapontamento dos que descobriam que, ao contrário de Pelé, o cidadão Édson Arantes do Nascimento não era perfeito.

Dois dos primeiros episódios de sua história merecem ser revistos. O primeiro já o foi pelo próprio, quando, em entrevista pouco antes da Copa de 2014, lembrando as lágrimas do pai Dondinho pela perda da Copa de 1950 — e pensando na possibilidade de nova derrota quatro anos depois, como de fato aconteceria — Pelé disse: “Não quero que meu filho também me veja chorando”. Em entrevistas mais antigas, o episódio terminava com um compromisso: o de que cresceria para dar ao pai um título mundial. Pelé tinha apenas nove anos quando o Maracanazo aconteceu.

O segundo episódio nos remete a alguns poucos contemporâneos, técnicos e jornalistas, que ainda se gabariam de ter previsto o formidável futuro do craque, assim que o viram em campo pela primeira vez. Previram mesmo? Ou será que o Pelé de 16 anos, camisa 10 do Santos, artilheiro do Campeonato Paulista de 1957, era apenas uma promessa, como tantas no futebol brasileiro de então? Mais exato é reconhecer que foi preciso um pouco mais de tempo, pelo menos um ano ou dois, para que se concluísse que o futebol de Pelé ia muito além dos limites da simples promessa.

Pelé chora, abraçado a Gilmar, após a goleada sobre a Suécia por 5 a 2 na decisão da Copa de 1958 — Foto: Keystone-France/Gamma Rapho via Getty Images
Pelé chora, abraçado a Gilmar, após a goleada sobre a Suécia por 5 a 2 na decisão da Copa de 1958 — Foto: Keystone-France/Gamma Rapho via Getty Images

Fazem parte daqueles contemporâneos os integrantes da comissão técnica da seleção de 1958, que, uma vez ganha a Copa, alegariam uma contusão para justificar o fato de Pelé ter embarcado para a Suécia como reserva de Dida. A contusão realmente aconteceu, num jogo-treino com o Corinthians, pouco antes da viagem. Mas o médico daquela seleção, Hilton Gosling, garantiu à comissão técnica que o caçula da delegação teria condições de jogo já na estreia contra a Áustria. Se tal não aconteceu, era porque Dida, excelente atacante do Flamengo, era o dono da posição.

Desse modo, Pelé começa sua história em Copa do Mundo desconhecido fora do Brasil e ainda sem lugar certo na seleção. Conquistou-o depois do fracasso de dois titulares, o mesmo Dida e Mazzola, e graças aos gols que foi marcando, jogo a jogo, das quartas de final até a decisão, alguns deles espetaculares. É possível ver, no lance do terceiro contra a Suécia, o instante em que o mundo o descobriu, então um adolescente ousando aplicar “chapéu” em gente grande. Mesmo assim, nem mesmo no Brasil Pelé era tão famoso. Por exemplo: o bem informado repórter Geraldo Romualdo da Silva, narrador do filme oficial da Copa de 1958, passou o tempo todo se referindo a ele como... Pelê.

É fato que nenhum outro jogador, daqui ou de fora, teve carreira tão brilhante. Brilhante, mas nem sempre ajudada pela sorte. Como o percurso de tantos heróis, o de Pelé foi marcado por tropeços, surpresas, passagens difíceis, quando não dramáticas. Nas duas Copas seguintes às de 1958, já reconhecido como o “melhor do mundo”, ele foi uma espécie de guerreiro impedido de combater. Na de 1962, por uma distensão muscular logo no segundo jogo, contra a Tchecoslováquia. Saiu de campo para não mais voltar. Na de 1966, acabou vencido por uma série de entradas violentas da defesa portuguesa, em especial de seu marcador, João Moraes.

O empate em 0 a 0 com a Tchecoslováquia, ainda na segunda rodada, marcou a despedida de Pelé da Copa de 1962 — Foto: Jorge Peter/Arquivo O Globo
O empate em 0 a 0 com a Tchecoslováquia, ainda na segunda rodada, marcou a despedida de Pelé da Copa de 1962 — Foto: Jorge Peter/Arquivo O Globo

Na primeira das duas campanhas, no Chile, foi bem substituído pelo valente Amarildo e ainda teve o consolo de ver Garrincha e mais dez levarem a seleção à conquista do bicampeonato.

Já quatro anos depois, na Inglaterra, saiu tudo errado. A seleção brasileira não passou da primeira fase, equivalente às oitavas de final numa época em que a Copa era disputada por 16 seleções, e ele, Pelé, sofreu a que seria sua única derrota em Copas do Mundo: 3 a 1 para Portugal de craques como Eusébio e Coluna e marcadores como Moraes. Pelé ficou tão transtornado que, ao voltar ao Brasil, fez uma declaração que ganhou as manchetes de todos os jornais: nunca mais jogaria uma Copa do Mundo.

A de 1966, conquistada pela Inglaterra, tem sido apontada pelos historiadores como o maior exemplo de desorganização de uma seleção brasileira desde 1938. É aquela em que 45 jogadores foram convocados para que, no fim, não se chegasse a Liverpool com 22 à altura de representar o futebol bicampeão mundial. Mas não foi por isso que Pelé quis desistir de — como dizia — cumprir pela terceira vez a promessa ao pai. Depois das duas frustrações pessoais, não se achava com sorte o bastante para prosseguir. A imagem que ficou daquele momento – Pelé deixando gramado do Goodson Park, trôpego, cabisbaixo, abatido pelos pontapés de um beque português – falava por ele. E, por exatos dois anos, não mais vestiu a camisa da seleção brasileira.

Mudanças importantes aconteceram no futebol brasileiro ao fim daqueles dois anos. Uma delas, a principal, no comando técnico. A então Comissão Selecionadora Nacional (Cosena), de Paulo Machado de Carvalho e Aimoré Moreira, foi desfeita pela CBD, cujo presidente, João Havelange, preocupava-se com a perda de prestígio de uma seleção que sofrera cinco derrotas depois do revés em Liverpool (duas delas, uma no Maracanã, para um México que até então jamais vencera o Brasil). Foi muito pela necessidade de reconquistar a simpatia e a confiança do torcedor que Havelange autorizou seu diretor, Antônio do Passo, a entregar a seleção a João Saldanha.

Pelé já estava de bem com a camisa amarela, e já mudara de ideia quanto a não jogar outra Copa do Mundo, quando Saldanha assumiu. O ano de 1969 foi perfeito. Pelé e o novo técnico se entenderam, a seleção ganhou uma cara. Venceu as seis partidas das eliminatórias (na última, num Maracanã com público recorde, Pelé marcou o gol único contra o Paraguai). Enfim, o Brasil garantiu presença na fase decisiva da Copa, no ano seguinte, no México. Os canarinhos viraram “feras” e, pela primeira vez em muito tempo, a esperança voltou.

O ano de 1970 nada teve de perfeito em seus primeiros meses. Pelé e Saldanha não se entenderam, chegando a discutir táticas nos dois sofridos amistosos com a Argentina (derrota em Porto Alegre, vitória apertada no Maracanã). O técnico tornou público um problema de vista de Pelé, barrou-o num amistoso com o Chile (segundo explicaria, para poupá-lo do desgaste físico) e, em meio a outros problemas (a briga com Yustrich, boicote por parte de outros membros da comissão técnica, ter aceito dividir as funções de técnico com as de comentarista de jornal, rádio e TV e as pressões políticas que sofria dentro e fora da seleção), Saldanha caiu.

Nunca se soube se, em algum momento, Pelé chegou a temer que aquela má sorte estivesse de volta e o impedisse de ser ele mesmo em sua quarta Copa, a de 1970. Os únicos comentários que fez sobre a crise que culminou com a substituição de Saldanha por Zagallo foram de que, para ele, a Copa que se aproximava seria a resposta a todas as questões: se poderia ou não jogá-la até o fim, se conseguiria ou não voltar a ajudar o Brasil a ganhar a taça de ouro, se haveria ou não um inexplicável abismo entre ele e a Copa do Mundo. A resposta o aguardava no México. Seis vitórias em seis jogos, campanha que mais justiça fez ao seu gênio. Nela, Pelé jogou como nunca, foi eleito o craque da grande festa, brilhou, marcou o primeiro gol da final com a Itália no Estádio Asteca. De novo e para sempre, Rei.

Jairzinho, Rivelino, Carlos Alberto, Pelé e Wilson Piazza comemoram a vitória do Brasil na final da Copa de 1970 — Foto: Arquivo O Globo
Jairzinho, Rivelino, Carlos Alberto, Pelé e Wilson Piazza comemoram a vitória do Brasil na final da Copa de 1970 — Foto: Arquivo O Globo

A quem acabamos de perder, o indecifrável Edson ou o genial Pelé? Por uma vida inteira, os dois — o cidadão e o craque — tentaram conviver como seres distintos que se admiram e respeitam. Edson era o homem comum, casou-se mais de uma vez, teve filhos dentro e fora do casamento, errou, acertou, nunca se deu a conhecer. Gostava de futebol, mas seu sonho, mesmo, era cantar e compor canções. Esperto, nunca se meteu em política. Viveu bem, sempre às custas de Pelé. E fazia questão de repetir que um pouco tinha a ver com o outro. Pelé é o oposto. Nada se soube sobre ele além do que era capaz de fazer com uma bola. Se alguém cobrava gestos e atitudes de Edson, em Pelé aceitava como fato consumado ele ter alcançado o que se supunha impossível: a perfeição. Seu futebol era uma combinação de técnica e beleza, arte e magia, soma de virtudes que fizeram orgulhar-se dele um país com poucos motivos de orgulho. Virtudes que derrubaram fronteiras, reconhecidas aqui e em toda parte. Pelé, cidadão do mundo, será sempre lembrado, sempre enaltecido. Pelos que o conhecem de vídeos e filmes e pelos que tiveram a sorte de vê-lo em ação. Edson Arantes do Nascimento morreu nesta sexta-feira aos 82 anos. A Pelé os deuses do futebol concederam as graças da eternidade.

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