Olimpíadas
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*Atleta da marcha atlética, em depoimento à repórter Carol Knoploch

Quando eu era pequeno, falei mais ou menos assim para minha mãe: “O futebol tem muitos heróis, não precisa de mim. A marcha atlética precisa”. Claro que hoje não usaria a palavra “heróis” — muita pretensão... Mas a ideia que eu tinha quando criança se mantém.

Sempre quis ver a marcha atlética com o mesmo reconhecimento de qualquer outra prova do atletismo brasileiro, de qualquer outro esporte. No Brasil, é assim: o povo tem dois esportes do coração, o futebol e o outro que está ganhando. Já fomos o país do tênis, o país do vôlei...

''O forte da sua mãe, dizia meu pai, é isso aí: a raça. Em viagens, era a mesma coisa. Primeiro ela treinava, depois a gente ia para a praia'. — Foto: Cristiano Mariz
''O forte da sua mãe, dizia meu pai, é isso aí: a raça. Em viagens, era a mesma coisa. Primeiro ela treinava, depois a gente ia para a praia'. — Foto: Cristiano Mariz

Eu sempre quis desconstruir essa imagem de patinho feio que a marcha atlética carregou por muito tempo. Como um legado.

Para quem não sabe, sou Caio Bonfim, filho de João Sena e Gianetti Sena Bonfim. Ele, treinador. Ela, uma tremenda marchadora — conquistou oito títulos brasileiros. Cresci vendo minha mãe ser atleta da marcha. E meu pai, seu técnico.

Com chuva ou sol, ela mantinha a rotina. Lembro-me dela treinando, debaixo d’água, na varanda de 30 metros quadrados lá de casa. Dando volta. Eu levava água e pensava: o que essa mulher está fazendo? O forte da sua mãe, dizia meu pai, é isso aí: a raça. Em viagens, era a mesma coisa. Primeiro ela treinava, depois a gente ia para a praia.

A Gianetti teve uma carreira invisível. Injustamente. Na época dela, a prova não tinha reconhecimento, e os atletas eram motivo de chacota. Ela ouviu absurdos na rua quando treinava. Isso quando não jogavam o carro em cima... Mas veja que coisa: quando um marchador vence, a medalha dele é igual à do velocista.

Quando eu era pequeno, nem sabia direito, mas eu queria transformar a marcha atlética, levar a modalidade para os cantos do Brasil e mostrar para todo mundo, no mundo inteiro, que poderíamos ser bons nisso. E eu tive a faca e o queijo na mão, né? Meus pais, que sempre me ensinaram tudo, continuam ao meu lado. É um privilégio.

''Meus pais sempre foram muito sinceros, diretos. Davam a real mesmo. Tanto que, para corrida, nem insistiam' — Foto: Cristiano Mariz
''Meus pais sempre foram muito sinceros, diretos. Davam a real mesmo. Tanto que, para corrida, nem insistiam' — Foto: Cristiano Mariz

Influência e reconhecimento

Desde cedo, eu era apaixonado por futebol, minha vida era jogar bola. Jogava na lateral esquerda, sem ser canhoto. Armava as jogadas para meus companheiros de time. Cheguei a atuar nas categorias de base do Brasiliense. Um dia, estava na reserva, mesmo voando em campo. Em outro, era escalado mesmo meia bomba. E minha mãe, que não é boba nem nada, aproveitava para me lembrar: “O futebol é assim. Mas na marcha, se você fizer a marca, o treinador pode gostar ou não de você, você estará escalado”.

Meus pais sempre foram muito sinceros, diretos. Davam a real mesmo. Tanto que, para corrida, nem insistiam. Naquela época, eu não me destacava nas competições de longa distância. Fui para a marcha, tinha talento. Quando me tornei marchador e obtive resultados positivos, entendi que tive influência. De onde tirei isso ou aquilo? Estava em mim: ouvi, vi e aprendi.

Me considero uma extensão da carreira da minha mãe. E me orgulho disso. Minha mãe sempre foi a minha treinadora. Em todas as situações da vida. Não teve mudança.

E hoje, com tantos marchadores talentosos, vivemos uma nova fase. Basta lembrar que, no Mundial de Budapeste, em 2023, o atletismo subiu ao pódio uma única vez: com a marcha (Caio foi bronze). A marcha atlética ocupou seu lugar. Patinho feio o caramba! (Caio e a marchadora Viviane Lyra foram eleitos os melhores atletas de 2023 pela Confederação Brasileira de Atletismo).

O mais incrível disso tudo é que estou vivendo esta fase ao lado dos meus pais, meus grandes amigos. O tempo passou, e a gente se aproximou. Sabe quando você vive momentos marcantes e quer contar aos pais? Vivo ao lado deles. Da derrota, de sentar no meio fio e chorar. Do preconceito e da sacanagem. Mas também do êxtase, da celebração de um resultado inimaginável.

Demonstração de brilho

Minha primeira medalha mundial, em Londres, em 2017, foi algo... Passamos por maus bocados, doenças do meu pai, da minha mãe... Quando eu cruzo a linha de chegada, vejo a Gianetti no chão, chorando. Ali era a mãe. Também vi meu pai, que é mais contido, pulando e dançando após outro bronze, no Sul-Americano de 2013, em Cartagena.

Eu tinha de ser campeão para me classificar ao Mundial seguinte, e ele apostou nessa prova. Mas, quando chegamos à Colômbia, eis que Éider Arévalo, o melhor do continente, também competiria. Meu pai se perguntou se tinha errado na estratégia. Durante a prova, o treinador do Éider gritava: “Vamos gigante”. E meu pai: “Vamos Davi”. Encaramos o Golias, e ganhei a prova faltando 20 metros.

E teve o Mundial de Doha, em 2019, prova duríssima, muito calor, fui para o pit lane... Minha mãe corria para cima e para baixo com gelo, garrafa de água. Estávamos sem estafe. Não fui bem, mas fiquei feliz. O cuidado dela, o carinho... Chorei. Nossa relação se fortaleceu ali. O bronze do Mundial de Budapeste, de 2023, se construiu ali. Criamos uma conexão, uma identidade.

É muito maluco, muito amor envolvido, muita intensidade e respeito. Transcende. Pelo olhar, ela sabe se estou bem, se estou mal, se tomei falta. O percurso pode estar lotado que eu escuto a sua voz.

Eu vi o brilho no seu olhar quando entramos na Vila Olímpica em Londres-2012. Minha primeira Olimpíada, a primeira dela também. Sei que ela se realiza comigo. Sou pai, eu sei. Faço o máximo para ela ver o quanto é pertencente a tudo isso, o quanto tem de sua construção.

Estamos na quarta Olimpíada. A marcha atlética chega a Paris com outras credenciais. Somos uma equipe forte, com chances de resultado inclusive na prova em dupla, um homem e uma mulher.

Espero ter a chance de buscar a medalha que me escapou por cinco segundos no Rio, em 2016 (o australiano Dane Bird-Smith foi bronze a cinco segundos de Caio). Esse foi um marco para mim, furamos a bolha. Brinco que o som da buzina mudou. Treinávamos na estrada, e era “péééé” bem alto; depois, um xingamento. Agora, é “panpan”, seguido de “vamos, campeão”. Essa medalha não está na prateleira.

À época, me perguntei se teria essa chance de novo. Não sou estrela, mas tenho meu brilho. Já fui 20º, mas também líder do ranking mundial. Estou sempre lutando e sei que, para ganhar, vou ter de marchar muito. Não me importo que falem que sou filho de mamãe. A verdade é que nem sei como é competir sem ela. Nem quero. Mãe, nossa chance está de volta.

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