Olimpíadas
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*Jogadora de rúgbi, em depoimento à repórter Carol Knoploch

Eu procuro ver o lado positivo em todas as situações. Sei que muitas vezes não é fácil encontrá-lo. Mas ele existe. E o que posso atestar, tendo como base as minhas experiências, é que a tranquilidade é muito maior quando escolhemos enxergar o lado bom. Foi assim que encarei minha recente recuperação. O que poderia fazer quando me vi diante de um quadro de câncer?

Este meu jeito de ser uma pessoa positiva está relacionado à minha mãe. Ela tem a maior energia positiva do mundo. Quando descobri a doença, decidi que a enfrentaria com coragem e leveza. Como ela fez, aliás.

Vera, minha mãe, também teve câncer na mama. Eu tinha 16 anos à época. Ela, 50. Eu morava em Caxias do Sul (RS). Tinha bolsa de estudos na faculdade de Educação Física, e ela não me deixou largar tudo para acompanhá-la em Pinhalzinho (SC).

Guardo na memória um momento marcante: quando a mãe perdeu os cabelos por conta da quimioterapia. Ela logo comprou uma peruca. Não queria que minha irmã mais nova, Isabel, a visse careca. Ela nunca tirava a peruca, nunca tinha se olhado no espelho sem ela. Quando fui para casa, no fim daquele ano, falei para ela tirar a peruca. Estava tão quente... Eu a encorajei a deixar a cabeça respirar. Ficamos tão felizes.

Minha mãe acreditou que tudo se resolveria da melhor forma. Ela trabalha em uma escola de Educação Infantil, é a “tia da limpeza”. E, mesmo afastada por conta da doença, visitava a escola e recarregava as baterias. As crianças, que ela chama de anjinhos, adoram a tia Vera — exatamente por causa do jeito dela.

Raquel Kochhann: 'Eu procuro ver o lado positivo em todas as situações. Sei que muitas vezes não é fácil encontrá-lo. Mas ele existe.' — Foto: Maria Isabel Oliveira
Raquel Kochhann: 'Eu procuro ver o lado positivo em todas as situações. Sei que muitas vezes não é fácil encontrá-lo. Mas ele existe.' — Foto: Maria Isabel Oliveira

A descoberta do meu câncer se deu por etapas. Em viagem de treinamento com a seleção brasileira de rúgbi para Tóquio-2020, percebi um caroço no peito. Eu fazia autoexame. Tinha seios volumosos e medo de não descobrir um câncer de mama. Se fosse para acontecer o pior, que fosse no início para o tratamento ser menos agressivo.

Fizemos os exames, a biópsia e tudo. E não havia indicação de câncer. Um ano depois, refiz os exames, e o caroço que antes tinha 2,4cm já estava com 4,2cm. Eu ia tirá-lo, mas precisaria de três semanas de molho, sem treino. Isso é impossível. Como não era urgente, adiei.

Cerca de um mês depois, na última etapa do Circuito Mundial, rompi o ligamento cruzado anterior do joelho. Olha como são as coisas! Fui obrigada a parar. Se fosse outra lesão, não teria parado.

Liguei para o mastologista para aproveitar o momento e fazer tudo de uma vez. Aí tomamos o primeiro susto. Quando esse caroço voltou da biópsia, dentro dele tinham células cancerígenas encapsuladas. Essas células estavam isoladas. Tirando o caroço, estaria livre, certo? Mas esse caroço fez com que descobríssemos que meu câncer estava no osso esterno. O caroço foi o mensageiro.

Quando minha mãe soube, ficou muda ao telefone. Mas eu disse que não queria que ela ficasse assustada. Não queria ninguém com dó ou sentimento ruim. Precisava de energia boa, queria piadas. Ela me acompanhou no fim do processo.

Se tive medo? Tenho muita fé, e se fosse para ser a minha hora, ia ser. Então, tentei aproveitar o que podia. Não iria viver sofrendo. É complicado explicar, mas não pensei em morte. Me perguntei: “O que preciso fazer para voltar a jogar?”. Encarei o processo como a recuperação de uma lesão. Até porque também tinha uma lesão no joelho a superar.

Não tive grandes efeitos colaterais. Segui de forma rígida o que a médica mandou fazer. O bochecho com bicarbonato de sódio, para evitar feridas na boca, era horrível.

Raspei os cabelos logo que começaram a cair. Já estavam curtos, e pedi para minhas amigas passarem a máquina. Elas disseram que só fariam se fosse com a música da novela, igual à cena da Carolina Dieckmann (em Laços de Família, da TV Globo, de 2000). Achei genial. Não teve choro, foi divertido.

Por opção minha e como prevenção, tirei os seios. Sou uma ex-gordinha, e meus seios estavam quase no umbigo. Isso me incomodava. Para jogar, tinha de usar dois tops. Eles machucam, apertam.

Minha mãe, que fez tratamento pelo SUS, tirou apenas a parte afetada e refez a mama com gordura do próprio corpo. Eu não quis refazer os seios, não ia colocar prótese e não tinha gordura para enxerto. Amo ser despeitada. Afinal, sou despeitada mesmo. E o que os outros pensam não me importa.

Raquel Kochhann: 'Se tive medo? Tenho muita fé, e se fosse para ser a minha hora, ia ser. Então, tentei aproveitar o que podia. Não iria viver sofrendo.' — Foto: Maria Isabel Oliveira
Raquel Kochhann: 'Se tive medo? Tenho muita fé, e se fosse para ser a minha hora, ia ser. Então, tentei aproveitar o que podia. Não iria viver sofrendo.' — Foto: Maria Isabel Oliveira

Sei que venci essa etapa. Faço o que está ao meu alcance para viver o melhor possível, até onde for possível. Perdi a Copa do Mundo e o Pan-americano de Santiago-2023, mas voltei a tempo de Paris-2024. E cá estou, na França, com o corpo mais saudável e musculoso se comparado aos dois ciclos anteriores.

Sei também que o fato de ter passado essa fase com a seleção me ajudou. Frequentei os treinos em meio às seis sessões de quimio. Era importante que eu me mantivesse mentalmente feliz.

Treinei com o grupo de desenvolvimento, cujas atividades têm menos intensidade. Quando cansava, parava e me recuperava. Também ajudei o treinador da equipe principal, com a qual fui bronze no Pan de 2015. Se precisasse de alguém para abrir bola ou para controlar o drone de filmagem, eu estava ali.

Mas teve um momento de preocupação. Meu câncer é no osso que protege o coração. E estou acostumada a receber porrada nessa área. Depois de liberada pela oncologista, esperei meses para o ortopedista da seleção brasileira fazer o mesmo. Fiquei mais de um ano sem treinar contato. Em outubro de 2023, veio a liberação e, em dezembro, a primeira competição pelo time Charruas Rugby.

Fiz zilhões de exames, e a verdade é que não há como saber a densidade desse osso após o processo. Não tem exame específico para a região. Cheguei a montar sozinha uma proteção com material do protetor bucal — que é rígido, porém maleável — e EVA. Uso embaixo do top e estou me livrando dela aos poucos.

Estou em Paris para minha terceira Olimpíada. E digo com toda certeza que o que passei neste ciclo não foi tão desesperador quanto a corrida para Tóquio-2020. Em fevereiro de 2021, operei a coluna por causa de um pinçamento neural. A Olimpíada era em julho. Precisava de quatro meses de recuperação. Eu tinha cinco. Joguei com dor, mas a adrenalina é mágica: quando entra no sangue, não sentimos nada.

Hoje, meu coração está acelerado. Não tenho medo. É emoção. Meu ponto forte continua sendo o tackle alto. E você me verá de peito aberto ao encontro da rival, na tentativa de contê-la. Porque esta sou eu: despeitada e destemida.

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