Olimpíadas
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(*Atleta da ginástica de trampolim, em depoimento à repórter Carol Knoploch)

Eu era a criança que não saía do pula-pula. Pequeno, já dava mortal. Adorava! Quando tinha festinha, então, monopolizava o brinquedo... Competitivo que sempre fui, queria pular mais alto que todos. E, se tivesse alguém voando mais que eu, levava para o lado do desafio. Pulava até passá-lo. Eu era esse tipo de criança. Posso dizer que hoje, aos 22 anos, tenho mais ou menos o mesmo objetivo: saltar mais alto que meus rivais. Faz tempo que larguei o pula-pula e sou atleta da ginástica de trampolim.

Rayan Dutra — Foto: Agência O Globo
Rayan Dutra — Foto: Agência O Globo

A modalidade não é conhecida do grande público, e tudo bem. Quando digo que sou ginasta, a pergunta que mais escuto é: “É a mesma do Arthur Zanetti e do Diego Hypólito?”. Tenho de explicar: “Quase”.

Eles são da artística, irmã mais importante entre as ginásticas e que integra o programa olímpico há mais de um século. A ginástica que pratico é no trampolim e entrou no programa em Sydney-2000. Ou seja, recentemente. Assim, entendo que ainda não esteja na boca do povo. E também não me ofendo. Fico feliz de explicar, sinto que estou fazendo um trabalho de campo.

Eu mesmo, quando tinha 10 anos, achei que faria teste para a artística. Quando cheguei ao Minas Tênis Clube, onde treino até hoje, fui desafiado a saltar no trampolim. Fiquei encantado. Tive facilidade para executar elementos e, meses depois, integrava a equipe do clube.

Lembro-me bem do dia: fiquei feliz que faria ginástica, qualquer que fosse. Além disso, o treino era em uma cama elástica enorme, muito maior que todas que havia visto na vida. E ainda podia pular o treino inteiro? “Mãe, agora, me leva!”.

Também tem gente que confunde a modalidade com saltos ornamentais. E aí a pergunta geralmente é assim: “É aquela em que se cai de cabeça na água?”. Explico que a gente faz uns mortais legais, mas não cai de cabeça na água. Cai em pé. Honestamente, acho que não teria coragem de fazer saltos. Meu instinto não é cair de cabeça. Fora que tenho medo de altura. Mas só quando fico parado em lugares altos... No trampolim, chegamos a oito metros de altura, é verdade. Mas, estando concentrado na série, a altura passa batido. Não olho para baixo.

Cirurgia após lesão

Eu sou Rayan Dutra e já fiz História ao me classificar diretamente para Paris-2024. Antes de mim, apenas um atleta brasileiro, Rafael Andrade, havia disputado os Jogos Olímpicos na ginástica de trampolim, na Rio-2016, por ser a cidade-sede.

Isso quer dizer que, para eu estar aqui em Paris, necessariamente estou entre os melhores do mundo. Apenas 16 atletas, incluindo os que foram contemplados com cotas continentais, disputarão o ouro na minha modalidade. Entrei nos Jogos Olímpicos como top 10.

Temos de apresentar duas séries, cada uma com 10 elementos. São cerca de 20 segundos de apresentação. E vale a série com maior pontuação. Para dar as notas, os jurados levam em consideração a dificuldade e a execução da série, além da altura atingida. O objetivo é sempre voltar ao centro do trampolim. Os deslocamentos são descontados.

Em Paris-2024, vou apresentar uma série nova com cinco mortais triplos e cinco mortais duplos, além das piruetas e das meias-voltas. Essa série é a mais difícil que fiz na vida. No Pan de Santiago-2023, tentei apresentá-la na fase preliminar. Passei pelos cinco triplos, mas não consegui dar ritmo para a sequência dos duplos. A frequência é outra, a velocidade é menor, e me perdi. Ainda assim, avancei à final com a primeira série apresentada e, depois, conquistei a prata individual (também foi bronze no sincronizado).

Rayan Dutra — Foto: Agência O Globo
Rayan Dutra — Foto: Agência O Globo

Fico pensando o quão bizarro é estar aqui após uma cirurgia na coluna há cerca de dois anos. Treinava justamente essa série que já encaixei em treino, mas ainda não rolou em competição.

Na ocasião, me perdi no ar após o segundo elemento e bati de costas em parte da estrutura do trampolim, entre um colchão e outro. Abriu um espaçamento entre as vértebras L3 e L4 da minha coluna, na região lombar. Precisei operar para estabilizá-la. A coisa foi feia, mas na época não me atentei. Hoje, quando lembro, tenho até medo. Retornei às competições internacionais quatro meses depois, e hoje parece que não aconteceu nada.

Só que atleta de alto rendimento é uma pessoa como outra qualquer. Isso quer dizer que a parte mental é importante nesse contexto. No ciclo de Tóquio-2020, me perdi no ar várias vezes. Basicamente, tive isso na minha carreira inteira: é a pane, algo semelhante ao que a ginasta americana Simone Biles sofreu no Japão. Fui para o torneio classificatório para Tóquio após um mês sem treinar por causa dessa confusão mental. Não deu certo.

Aconteceu outras vezes: simplesmente esqueci o elemento e não completei a série. Dava branco. Em vários momentos, inclusive, tive de reaprender os elementos como se fosse a primeira vez.

Transformações na vida pessoal

Para Paris, posso dizer que passei ileso pelas panes. Não sei o que mudou. Tinha 19 anos quando tentei me classificar para a Olimpíada pela primeira vez. Nem eu acreditava que conseguiria. Senti a pressão.

Fiz muitas sessões com minha psicóloga para tentar entender o que ativa minha pane, o que me leva a esquecer os elementos do nada. E não tenho a resposta. Acho que o tempo ajudou, minha maturidade cresceu, a confiança também. Sou competitivo e, quando viro a chave para esse momento, sou outra pessoa, entro para o pau mesmo. Sempre me cobrei muito e passei a ser gentil comigo mesmo. Recuperei a sensação de me sentir bem no trampolim.

O que aconteceu com a Biles — lamentei por ela e me compadeci dela — não deixou de ser importante para o esporte em geral. Atleta não é máquina. Fazemos coisas incríveis como tantos de vocês. A saúde mental passou a ter visibilidade principalmente para o público e para atletas. Depois de Biles, muitos tiveram coragem de falar o que sentem.

Posso não ter tido panes neste ciclo, mas tive momentos de ansiedade, momentos em que não quis sair da cama. Tenho questões familiares, terminei um relacionamento... Um dia depois da tal cirurgia na coluna, em 2022, me mudei para um apartamento só meu. Sinto falta da confusão deliciosa que era estar com minha mãe, avó e cinco irmãos. Tenho família grande e espalhafatosa, mas precisava de espaço.

Minha classificação olímpica saiu em março, e até essa confirmação tive dias bons e ruins. Essa é a vida de um atleta. E está tudo certo. Não perdi e não perderei tão cedo a vontade de encarar desafios, a meta de pular mais alto que o amiguinho. Nesta lista, porém, acrescentei o respeito comigo mesmo.

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