Poucas eram as dúvidas de que Simone Biles varreria todas as medalhas nos Jogos Olímpicos de Tóquio-2020. Porém, sua desistência das finais do individual geral, por causa de bloqueios mentais sentido durante a execução de um salto — fenômeno chamado de twisties na ginástica artística —, fez a atleta, que já é considerada uma das maiores da história do esporte, também se tornar importante personagem na discussão de saúde mental.
— Assim que eu piso no tablado, sou só eu e a minha cabeça lidando com demônios. Tenho que fazer o que é certo para mim, me concentrar na minha saúde mental e não prejudicar minha saúde e meu bem-estar. Não confio tanto em mim como antes — disse Biles a atônitos jornalistas ainda em Tóquio.
Esta é a primeira de três reportagens que aborda o quanto o esporte mexe com a cabeça, e requer habilidades específicas para que o cérebro chegue ao mais alto nível.
Paris 2024: Delegação brasileira desfilando em barco durante a abertura dos jogos olímpicos 2024
O termo twisties nasce na ginástica — em outros esportes, é denominado shocking, algo como “engasgo” — e se refere a um fenômeno de perda de noção espacial em que o corpo passa a não cooperar com a realização de movimentos treinados exaustivamente, provocando uma queda de desempenho abrupto.
Ansiedade alta
No cérebro, o bloqueio mental se explica pela quebra de um importante elo. O sistema límbico, responsável por receber todos os estímulo e dar um “colorido emocional” às informações externas, para de se comunicar com o sistema racional, as áreas motoras e de localização espacial, responsáveis por tomadas de decisão.
— Se interpretou algo como extremamente arriscado, a informação que segue para a área racional é inibitória. São as emoções que passam a gerenciar. Nesse momento, é como se eles estivessem cegos racionalmente e regidos, exclusivamente, pelos seus sentimentos de pavor, medo e pânico. Você tem uma paralisia motora racional — explica ao GLOBO o neurocientista cognitivo Pablo Vinícius.
As causas de um bloqueio mental podem ser variadas, mas, costumeiramente, são o ápice de um estado de ansiedade muito elevado. A ansiedade é natural, mas, em níveis exagerados, se torna patológica. Divididos em três grupos principais — físicos, internos e externos —, os motivos podem ir desde uma lesão a uma noite mal dormida.
O que tinha acontecido com Simone Biles?
Até os mais geniais atletas, como Biles, podem ser acometidos por tal condição, que acontece, sobretudo, em modalidades de grande risco físico, como ginástica, saltos ornamentais, salto com vara, hipismo e automobilismo.
— Era uma pressão muito grande. Talvez tenha concluído que era muito melhor sair das Olimpíadas do jeito que estava do que correr o risco de sair com uma medalha que não fosse de ouro, errar ou se machucar. Para eles, essa incerteza pode ser muito tensa e difícil de lidar — analisa ao GLOBO Anna Vitoria Renaux, psicóloga da Confederação Brasileira de Atletismo.
O atleta que colapsa em meio a uma competição não esquece tudo que aprendeu durante uma vida de treinos. Porém, precisa recomeçar e dar alguns passos atrás, mesmo que isso signifique diminuir o nível de exigência ou parar. A desistência de Biles naquela Olimpíada a fez se afastar das competições por dois anos.
“Muitas pessoas pensaram que eu falhei porque esperavam que eu saísse com cinco ou seis medalhas, mas sair foi minha maior vitória. Tive que me colocar em consideração por uma das primeiras vezes ao longo da minha carreira ”, disse Biles, em abril de 2022, durante uma palestra.
Visualizar para controlar
Neste tempo, a discussão sobre saúde mental no esporte ganhou mais visibilidade e passou a ser aceita por técnicos e patrocinadores.
— Sem saúde, seu atleta não vai performar — diz Renaux.
- Muito além de Biles: equipe americana de ginástica tem volta de campeã e promessa de 16 anos; conheça
Há quatro pilares para que um atleta possa se preparar melhor para momentos de alta pressão: bom programa de preparo físico, atenção especial à nutrição e ao sono, manutenção de uma rede saudável de apoio social e, sobretudo, um forte treinamento mental.
Segundo Pablo Vinícius, a melhor técnica para encarar momentos de grande pressão é a visualização, na qual os atletas, de olhos fechados, se imaginam fazendo os movimentos e se antecipando a eventuais situações e emoções a que serão apresentados:
— A razão da técnica é que o seu cérebro não sabe o que é real e o que é imaginado. Então, quando você fecha os olhos e imagina algo, as mesmas áreas estão ativadas como se aquilo estivesse acontecendo na realidade — explica o neurocientista.
Biles estreia nos Jogos de Paris-2024 hoje, às 6h40 (horário de Brasília). As brasileiras competem a partir das 16h10.