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Torcidas antifascistas ocupam 'vácuo' de partidos políticos nas ruas, diz pesquisador de organizadas

Sociólogo e professor da FGV, Bernardo Buarque de Hollanda lembra histórico de violência entre torcedores e PM e alerta para risco de intensificação de confrontos
Torcidas de times de futebol protestam em defesa da democracia em SP e Rio de janeiro. Na foto, a torcida do Flamengo Foto: Reprodução
Torcidas de times de futebol protestam em defesa da democracia em SP e Rio de janeiro. Na foto, a torcida do Flamengo Foto: Reprodução

Professor da FGV e pesquisador das torcidas organizadas, o sociólogo Bernardo Buarque de Hollanda avalia, em entrevista ao GLOBO, que a participação de torcedores na linha de frente de atos pró-democracia no fim de semana surge em um vácuo deixado por organizações políticas tradicionais nas ruas, por um lado, e como desdobramento de dinâmicas internas das próprias torcidas, por outro.

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As torcidas antifascistas, nascidas em parte como reação a grupos tradicionais nos próprios clubes, como lembra o pesquisador, se apresentaram ao lado de representantes de organizadas antigas - embora essas torcidas maiores, como a Gaviões da Fiel, não tenham apoiado institucionalmente os protestos.

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Para Buarque, há um contexto internacional de participação de torcedores em movimentos políticos ao longo da última década. O pesquisador alerta que o histórico de confrontos entre a Polícia Militar e torcidas organizadas, somado à simpatia recente entre policiais e a base política do presidente Jair Bolsonaro, podem acirrar a violência nas próximas semanas.

Causou surpresa as torcidas assumirem a linha de frente contra a militância bolsonarista?

O fato de serem torcidas desarmou um pouco a retórica dos bolsonaristas. Como não eram simplesmente “os vermelhos”, tiveram que sair do argumento político para o moral, de que as organizadas são “violentas”, “promovem o caos”, o velho estigma. Há um contexto histórico internacional que passa pela Primavera Árabe, que teve participação de ultras do Egito, e chega até o contexto latino-americano, com a contestação ao governo chileno de Sebastian Piñera com participação de barras com histórico de rivalidade, como das do Colo-Colo e da Universidad de Chile. No contexto brasileiro, as jornadas de junho de 2013 já estavam marcadas por um vácuo de representação de formas político-partidárias mais tradicionais. É algo importante para entender como aparece esta participação, neste momento, de torcidas ligadas ao Corinthians e até a rivais como Internacional e Grêmio. Há movimentos de esquerda que não vêm conseguindo ocupar este vácuo.

Os protestos no Rio e São Paulo foram encabeçados pelas chamadas “torcidas antifascistas”, que são grupos relativamente novos.

São grupos com perfil mais de classe média, estudantes, e que partem da identidade clubística para trazer pautas extra-esportivas, como as lutas contra machismo, racismo e homofobia. É algo que vem sendo estimulado de forma difusa nas arquibancadas nos últimos anos, e que ganhou corpo como reação à elitização de estádios e também numa certa insatisfação com as torcidas organizadas tradicionais. Mas houve uma convergência no domingo entre esses grupos e as organizadas mais antigas, que têm uma atuação mais ligada à periferia e até intensificaram suas atividades beneficentes, como as arrecadações e doações de alimentos, durante esta pandemia.

Por que, embora vários de seus membros tenham comparecido, organizadas tradicionais como a Gaviões da Fiel não endossaram institucionalmente os protestos?

As organizadas são enormes. Seus diretores costumam brincar que lá tem de tudo, de marechal a marginal. Por vezes há divergência entre a cúpula e a base. Em 2018, o Digão, presidente da Gaviões, puxou um discurso contra a ditadura que não foi bem recebido pela base da torcida. Naquele momento, Bolsonaro era um fenômeno de votos. O que existe, por outro lado, é a possibilidade de união de torcidas antifascistas.

Rivalidades tradicionais entre torcidas do mesmo clube podem ganhar contornos políticos?

É interessante que, enquanto países como a Ucrânia, por exemplo, viram uma tendência de nacionalismo xenófobo nos grupos de torcedores, no Brasil não houve essa polarização nas torcidas, em que há certa predominância à esquerda. Também há grupos dentro das torcidas com uma pauta mais à direita, mas pouco aparecem. Em São Paulo há uma aceitação maior entre organizadas tradicionais a grupos como o Democracia Corinthiana, por exemplo, que é um coletivo, não disputa espaço na arquibancada, e eventualmente têm participação de integrantes da Gaviões e da Camisa 12. No Rio, houve disputa de espaço e alguns grupos de torcedores de Fluminense e Flamengo cresceram no vácuo deixado pelo banimento de organizadas dos estádios.

E as rivalidades clubísticas?

Tem se falado muito dos integrantes bolsonaristas da Mancha Verde, e o próprio Bolsonaro é torcedor do Palmeiras, em contraposição, por exemplo, à Gaviões ou a Independente, ligada ao São Paulo, mas todas as diretorias preferem frisar que são apartidárias, para evitar os ruídos internos. A questão para as organizadas é que alguns acham que, por essa situação de fragilidade jurídica, em que vários líderes foram presos ou são alvo de processos, entrar na linha de frente dos protestos pode ser um risco. Outros acham que este é justamente um momento para marcar presença.

A relação conturbada entre as torcidas e a Polícia Militar é um elemento que pode acirrar a violência nas ruas?

Temos visto as PMs estaduais serem aliciadas pelo bolsonarismo. Há um histórico de repressão policial a protestos associados à esquerda, e a manifestação de domingo no Palácio Guanabara é evidência disso. Por outro lado, há uma predisposição também no tratamento às organizadas. A ação da PM em Copacabana no domingo é o modus operandi em caravanas de torcidas em outro ambiente. Acho que juntaram-se as duas coisas, é quase um coquetel explosivo. A tendência de intensificação do confronto é bem grande.