Gastronomia Vinhos de Portugal

Adriana Calcanhotto: 'Os poetas foram a minha porta de entrada em Portugal'

Cantora e compositora participa pela quarta vez do Vinhos de Portugal. Desta vez, ela está no documentário 'Ando pelo mundo do vinho', que a acompanha em uma viagem ao país para 'cheirar vinhos'
A cantora e compositora Adriana Calcanhotto lançou o álbum 'Só' durante a quarentena. Agora, ela participa do evento Vinhos de Portugal, em que um mini documentário, dividido em três episódio, conta a viagem que fez a Portugal em 2016 Foto: Divulgação/Leo Aversa
A cantora e compositora Adriana Calcanhotto lançou o álbum 'Só' durante a quarentena. Agora, ela participa do evento Vinhos de Portugal, em que um mini documentário, dividido em três episódio, conta a viagem que fez a Portugal em 2016 Foto: Divulgação/Leo Aversa

Adriana Calcanhotto se preparava para viajar a Portugal quando a Covid-19 colocou o planeta em quarentena. A energia que usaria na Universidade de Coimbra, onde é professora convidada, transformou em música. Em dez dias, compôs as nove canções do álbum “Só”, lançado em maio, um documento poético desse período. Ainda cumprindo o isolamento social, em sua casa no Rio, ela colocou nas plataformas de streaming o single “Futuros Amantes”, canção de Chico Buarque que está no álbum visual “Margem finda a viagem”, previsto para novembro. No mesmo mês, Adriana voltará à Europa para encerrar a turnê "Margem", interrompida em fevereiro.

A cantora e compositora Adriana Calcanhotto conversou com Renata Izaal, enquanto era gravada por um drone. Adriana falou sobre seu novo disco 'Só', lançado durante a quarentena, sobre a música feita após a morte do menino Miguel Otávio, de 5 anos, morto após cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife, as queimadas no Pantanal e sobre sua relação com Portugal, onde leciona.
A cantora e compositora Adriana Calcanhotto conversou com Renata Izaal, enquanto era gravada por um drone. Adriana falou sobre seu novo disco 'Só', lançado durante a quarentena, sobre a música feita após a morte do menino Miguel Otávio, de 5 anos, morto após cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife, as queimadas no Pantanal e sobre sua relação com Portugal, onde leciona.

Nos últimos anos, a cantora e compositora cultivou uma relação próxima com Portugal, inspirada pela poesia e a Arqueologia. Um pouco de sua aventura lusa está no mini documentário “Ando pelo mundo do vinho”, que registra a viagem que fez ao país em 2016 para, em suas palavras, “cheirar vinhos”. Dividido em três episódios, ele acompanha Adriana em uma conversa com Álvaro Siza Vieira, prêmio Pritzker de Arquitetura, que desenhou um copo para o vinho do Porto; no Douro com o produtor Dirk Niepoort e o cartunista Luís Afonso, com quem desenha um rótulo de vinho; e no Dão, onde foi entronizada na Confraria do Dão, com direito ao figurino que o título requer.

"Ando pelo mundo do vinho" faz parte da programação do evento Vinhos de Portugal, que os jornais O GLOBO, Público e Valor Econômico realizam de 23 a 25 de outubro, em plataforma digital, com a Vini Portugal. Os três episódios, a programação do Salão de Degustação e das Salas de Provas, além da venda de ingressos, estão no site: vinhosdeportugal2020.com.br

Em entrevista, Adriana Calcanhotto lembra a viagem, explica o que a fascina em Portugal e conta como a quarentena a fez produzir um ciclo de canções em que reflete sobre o Brasil contemporâneo.

Como tem sido essa longa quarentena para você?

Longa, bem longa! Para mim, não é difícil ficar aqui onde eu moro, no lugar que adoro, no meio da mata. Tem sido produtivo porque dá tempo de estudar, de pensar e de meditar. Agora, fora da minha bolha na mata, acho que as coisas estão bem complicadas. Passei a quarentena só, e me preparei um pouquinho antes de ir para Coimbra. Separei alguns dias para compor, com os violões, porque eu sabia que ia viajar. Mas veio a pandemia, e eu não viajei. Então fiquei aqui, fazendo canções, uma por dia, durante dez dias, e fiz o álbum “Só”. Isso foi no começo da pandemia. Por isso, eu tenho dito que queimei um pouco a largada, não imaginava que seria tão longo. Mas também ninguém imaginava nada.

Você cumpre a quarentena sozinha. Seu disco “Só” fala sobre isso?

Tem a ver. São canções compostas dentro da ambiência da pandemia; tem a questão do isolamento, das solidões que tivemos que encarar, das pessoas empilhadas em edifícios e sozinhas. É um disco bem político, algumas canções mais explicitamente. Esse recolhimento fez a gente pensar sobre as nossas solidões, sobre a pandemia, o negacionismo, o saneamento básico, as questões do Brasil, que já estavam aí, mas a pandemia as escancarou. O disco está permeado por tudo isso, do início ao fim.

O que mais te marcou nesse período?

Me emocionou muito a solidariedade das pessoas, sobretudo das que têm menos e que, mesmo assim, compartilharam. Mas o que mais me marcou foi a morte do menino Miguel Otávio, que escancarou toda a desigualdade e o racismo estrutural brasileiros (Miguel, de 5 anos, morreu depois de cair do nono andar de um prédio no Recife, enquanto estava aos cuidados da patroa de sua mãe) . Essa história é uma apoteose do que o Brasil tem de pior, um exemplo do que não pode acontecer. Por isso, fiz a canção “Dois de junho”, que não é do “Só”, mas está nesse ciclo de canções que lidam com o presente. Todo mundo queria uma oportunidade para repensar. Agora, não há mais desculpas.

A morte do Miguel foi uma gota d'água?

A morte do Miguel foi o que mais me atingiu na pandemia, fiquei arrasada. Eu zanzava pela casa e comecei a entender os fatos como versos. "Dois de Junho" é quase uma canção jornalística, não é? Alguns dos meus versos comentam os fatos, e é tão ruim que sejam fatos. Eu fazia dois versos, não aguentava e largava. Mas eu também não conseguia fazer outra coisa. Eu disse isso a Mirtes (mãe do menino Miguel, com quem Adriana fez uma live) e falo isso a outras pessoas: eu não consegui não fazer essa canção. E isso eu nunca tinha vivido.

Você acredita que as coisas vão mudar a partir da pandemia?

Está na nossa mão, temos que agir. Há muitas pessoas se mobilizando, assim como muitas até agora estão negando. Eu li a entrevista que vocês fizeram com o (Fabio) Porchat. Ele disse que as pessoas que não são legais não vão ficar legais depois disso. Eu não acredito em volta; aquilo que era já passou. Nós não vamos voltar para lugar nenhum, nós vamos em frente. Achei muito profundo o Porchat dizer que a gente precisa ser otimista, mas com uma dose de realidade. O governo do estado tira dinheiro da saúde, as pessoas ficam sem teste de Covid, o dinheiro sendo desviado... Também não acho que as pessoas que pensam dessa forma vão mudar. Elas tiveram uma pandemia como oportunidade de pensar melhor. Mas acho que a possibilidade de mudança está nas nossas mãos, nas mãos de quem não pensa assim.

É interessante você lançar nesse momento  “Futuros amantes”, a canção do Chico que começa com os versos “não se afobe não, que nada é pra já”.

É verdade! Essa canção tem uma ligação com “Ilhéus”, poema do Antonio Cicero musicado pelo José Miguel Wisnik. As duas falam de um tempo depois do nosso, são pessoas maravilhadas com a natureza e, muito depois de nós, questionando o sentido e a natureza das coisas. Eu gosto de pensar essa ideia do depois. Estudo Arqueologia em Coimbra, então penso nas camadas da civilização: o fórum do Júlio César lá embaixo e a gente aqui em cima. Daqui a muitos anos, uma civilização vai olhar para nós e pensar: “Ué, estranha civilização.”

Se houver civilização...

Estou horrorizada com o que está acontecendo. Embora quando você vai vendo, não é tão surpreendente; não é que na campanha a gente não tenha sido avisado. Estamos no limite de esgotar o planeta, mas queimadas continuam acontecendo, e elas só vão se agravar por causa do desequilíbrio ambiental. Desde os anos 1970 se fala nisso, o que dá um certo cansaço. Às vezes, eu penso que a espécie humana é aquela que depreda o próprio habitat, que está fadada à extinção. Mas também tenho esperança.

O que te dá esperança?

As novas gerações, como a Greta Thunberg e a Malala, que têm um outro jeito de ver o mundo. É uma geração que não tem cabeça para essa coisa extrativista e antiga. Elas são corajosas e têm o discurso ambiental e de educação como meta, como ideal e constatação da realidade.

Tem esperança no Brasil?

Está nas nossas mãos. O que a gente tem em frente? Eleições. A gente pode elevar o nível, mexer nas questões e modernizar. Acho que começa com a gente votando bem.

Modernizar o discurso sobre a Cultura, por exemplo.

Acho muito ruim ainda ter que dizer que a arte e a educação são importantes, não são supérfluos. Temos uma grande oportunidade agora, se quisermos. O mundo sempre teve pestes, elas passaram e os tempos sempre mudaram.

Já que falamos de esperança, o que quer fazer quando isso tudo passar?

Cortar o cabelo, que está impossível! Em novembro, vou terminar a turnê “Margem”, que foi interrompida. Ela acabou no Brasil, e aí a gente iria em maio para a Europa. eu já estaria lá, pois estaria em Coimbra. Não aconteceu, mas será em novembro, desse jeito novo, com menos gente na plateia e novos protocolos de segurança. Mas, olha, vou te dizer que eu acho que a gente já está em um outro tempo, em outro mundo. Eu tenho a impressão de que tudo isso é um final do século XX e que o século XXI vai se iniciar a partir do ano que vem.

Adriana Calcanhotto: ela lança o álbum visual "Margem finda a Viagem", que registra a turnê do disco "Margem", lançado em 2019. Em novembro, a cantora e compositora levará a turnê à Europa Foto: Divulgação/Murilo Alvesso
Adriana Calcanhotto: ela lança o álbum visual "Margem finda a Viagem", que registra a turnê do disco "Margem", lançado em 2019. Em novembro, a cantora e compositora levará a turnê à Europa Foto: Divulgação/Murilo Alvesso

Você volta a Portugal em novembro. Está com saudades?

Estou sim, mas tenho também uma técnica: quando estou aqui, eu estou aqui e quando eu estou lá, eu estou lá. Não fico comparando. Prefiro viver no presente e no lugar em que estou.

Como começou a sua ligação com Portugal?

Começou com algumas críticas aos meus discos, que não eram lançados lá. Mas alguns críticos passaram a importá-los e saíram matérias incríveis lá. Naquela época, não se lançava um disco hoje para ser ouvido no mundo inteiro no mesmo dia. Depois vieram os convites para os shows. Fui apresentada à poesia portuguesa, antiga e contemporânea, e  essa foi a minha porta de entrada em Portugal. E não foi outra maravilha qualquer, das tantas maravilhas portuguesas que você adentra, e que servem como porta de entrada para o Portugal profundo. No meu caso, começou com os poetas portugueses.

Em 2016, você foi a Portugal cheirar vinhos...

Eu gosto muito dessa ideia de cheirar o vinho e não precisar beber, de entender o vinho a partir do cheiro. O meu interesse principal na Arqueologia é o Portugal romano, e o vinhos portugueses começaram a ser produzidos para abastecer o exército de Roma. É uma história muito antiga, que ainda tem resquícios na forma de produzir. Ouvir coisas sobre o vinho, a descrição através dos aromas, enfim, é todo um universo, que já não é o dos poetas, mas é um outro caminho que Portugal me deu.

E o que descobriu?

Descobri coisas maravilhosas. Eu ignorava o processo e a feitura de um vinho, o tempo que ele leva. Conheci o arquiteto Siza Vieira, que desenhou o copo do vinho do Porto. Tive essa conversa com ele, ouvi suas observações sobre como se bebe o vinho, como se pega o copo. É um negócio tão lapidado, uma construção tão bonita. Fui ao Douro com o (produtor) Dirk Niepoort e também fui entronizada na Confraria do Dão. Eu vi muitas coisas, métodos, processos, envelhecimento. Foi em 2016, mas fiz tanto de lá para cá, que parece que já tem mais de dez anos.

E como é lecionar em Coimbra?

É incrível! É uma classe, não conta pontos para nada, os alunos estão lá porque querem. Tem gente de Portugal, de todo o Brasil, de Angola... É um oferecimento que a universidade faz para a comunidade, não precisa ser aluno de Coimbra. É um diálogo de uma universidade de 726 anos com a comunidade e com os artistas. Essa é uma tendência mundial, algo que tem acontecido muito, a interação entre artistas e Academia.

O que mais gosta em Portugal?

Os portugueses. É um país pequeno, mas muito diverso. Eles são muito avançados em tecnologia, por exemplo, mas há um equilíbrio único entre novidade e tradição. E os portugueses são incríveis, quando você faz um amigo no Porto, é para toda a vida. Sério!

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Vinhos de Portugal é uma realização dos jornais O Globo, Valor Econômico e Público, com parceria de ViniPortugal, apoio da Comissão Vitivinícola do Alentejo, Agência Regional de Promoção Turística do Centro de Portugal, Associação Portuguesa de Cortiça (APCOR), Mozak e AGO, participação do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), Azeites Esporão e Comissão Vitivinícola do Dão, projeto da Out of Paper, hotel oficial Onyria Quinta da Marinha, taça oficial Schottt Zwiesel, rádio oficial CBN e apoio institucional do SindRio.

SERVIÇO

Vinhos de Portugal: de 23 a 25 de outubro. Programação e ingressos no site:
vinhosdeportugal2020.com.br

Salão de Degustação (ingresso para os três dias): R$ 75 + taxa de 10% (sem vinho) e R$ 155 + taxa de 10% (com um vinho e brindes; RJ e SP). Assinantes O GLOBO têm 20% de desconto.

Provas (ingresso por live): R$ 90 + 10% (sem vinho) e de R$ 410 a R$ 950 + 10% (com três ou quatro vinhos e brindes; RJ e SP). Comprando o ingresso para a Sala de Provas com o kit de vinhos, o participante também pode acessar as lives do Salão de Degustação.

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