‘200+20’: No projeto de independência, Brasil nasceu com batalhas e um massacre com 254 vítimas

Na esteira do Grito do Ipiranga, episódio conhecido como Brigue Palhaço deixou mortos em porão de um navio em 1823, em Belém do Pará

Por Chico Otávio — Rio de Janeiro


Independência do Brasil foi marcada por confrontos sangrentos de norte a sul, incluindo um massacre de 254 pessoas no porão de um navio em 1823, no episódio conhecido como Brigue Palhaço Arte l Agência O Globo

Na contramão do imaginário popular, a Independência do Brasil não foi um acordo de cavalheiros, no qual todos aceitaram pacificamente a unificação do país numa só monarquia. Na esteira do Grito do Ipiranga, confrontos sangrentos ocorreram de norte a sul, incluindo um massacre de 254 pessoas no porão de um navio em 1823, em Belém do Pará, no episódio conhecido como Brigue Palhaço.

O Arquivo Nacional abriu seu acervo sobre o período a seis pesquisadores, coordenados pela historiadora Renata William Santos do Vale, para a produção de um livro até o fim do ano sobre as “Guerras de Independência”. Além de enfrentamentos violentos, em especial no Pará, Maranhão, Bahia, Cisplatina (futuro Uruguai) e Pernambuco, será revista a sensação de que a resistência ao projeto de Império de D. Pedro I teria sido motivada por sentimento antipatriótico. Não foi bem assim, diz a historiadora:

— As motivações foram diversas. Havia os que desconfiavam que Lisboa representaria um retrocesso econômico, fechando novamente os portos. Outros temiam uma monarquia absolutista com Pedro I com a subordinação das províncias ao Rio, e preferiam continuar com as Cortes Portuguesas, que passavam pela reforma liberal após a Revolução do Porto, em 1820.

Os documentos estudados, frisa a pesquisadora, são pouco conhecidos e lançam luz sobre episódios obscuros do período entre 1822 e 1825, como o do Brigue Palhaço. Os historiadores mergulharam especialmente nos registros das séries “Interior”, “Guerra” e “Marinha” no acervo do Arquivo Nacional.

O episódio do Brigue Palhaço ocorreu entre 16 e 21 de outubro de 1823, quando um brigue (embarcação à vela) comandado pelo militar britânico John Pascoe Grenfell (1800-1869) ancorou em Belém, sob as ordens de Pedro I, para dominar o Pará.

Desespero e massacre

A tripulação prendeu 256 soldados das tropas de segunda linha da província, em sua maioria indígenas e mestiços, que serviam na região, ajudavam na proteção das fronteiras amazônicas e sequer tentaram resistir às forças imperiais. O que eles de fato almejavam era, com a mudança de governo, equiparar o valor do soldo entre brasileiros e portugueses, além de chances mais igualitárias de progressão na carreira.

Em vez de diálogo, no entanto, receberam ordem de prisão. Sentindo-se traídos, se revoltaram. Após serem confinados na cadeia pública, os militares foram transferidos para o porão do brigue São José Diligente, onde a revolta se transformou em desespero. A reação dos algozes foi vedar a entrada do porão, bloqueando a passagem de ar. Uns morreram asfixiados, outros foram envenenados e houve luta interna. Na manhã seguinte, 254 presos estavam mortos. Só um sobreviveu para narrar o ocorrido.

A historiadora Magda Ricci, da Universidade Federal do Pará (UFPA), enfatiza que o ambiente na província, nada simpático à Corte no Rio, contribuiu para a escalada de violência. Como o tempo de travessia oceânica entre Belém e Lisboa era de um mês, a depender do regime de ventos, enquanto a viagem ao Rio poderia levar três meses, a identidade com Lisboa, especialmente a comercial, era bem mais forte.

— Os portugueses se enraizaram em Belém e ganharam rios de dinheiro com o tráfico negreiro entre 1798 e 1815. Eles organizaram um projeto que ligava o antigo Grão-Pará a Caiena (tomada aos franceses em 1809). Neste projeto, até ao menos 1817 (quando a Guiana foi devolvida aos franceses), o Rio era periférico. Depois disso, a união direta com Lisboa e o Porto ficou mais forte com a Revolução de 1820 — diz Magda.

A ruptura do Pará com Portugal só aconteceu em 1823, um ano após o Brasil se tornar independente. Para conseguir a adesão da formal província em 15 de agosto, Grenfell blefou ao aparecer com um só barco em Belém, mas advertindo que uma esquadra estava estacionada em Salinas, em região próxima à divisa com o Maranhão, pronta para bloquear o acesso ao porto da capital, isolando assim o Pará do resto do Brasil, caso não se submetesse ao Rio.

Após ordenar o fuzilamento de 17 cidadãos e permitir o massacre dos 254 presos no Diligente, o britânico conseguiu escapar impune. O Arquivo Nacional abriga a segunda devassa (investigação) sobre o episódio, que só apurou o caso seis anos depois. O Brigue recebeu então a alcunha de Palhaço, pela onda de revolta que o episódio gerou.

— Com o tempo, o Brigue Palhaço ganhou sentidos diferentes. Alguns subsistem até hoje, como a luta pela terra. De onde vem o ódio da (revolta da) Cabanagem? Do trauma do Brigue. Por mais sangrentos e violentos que tenham sido os processos de separação, todos comemoram uma Independência — diz Magda Ricci.

A Cabanagem foi uma revolta popular violenta (com quase trinta mil mortos) e republicana que assolou o Grão-Pará entre 1835 e 1840, durante o período regencial. Teve caráter de fato popular (daí o batismo, pejorativo, relacionando os insurretos com o tipo de habitação, as cabanas, onde viviam), com a maioria dos revoltosos, assim como as vítimas do “Brigue Palhaço”, sendo indígenas, ribeirinhos e negros.

Violência na Bahia

A Bahia também sofreu com a violência na luta pela Independência. Mesmo após a adesão formal a Pedro I em 1823 e fuga dos opositores em massa para Lisboa, as disputas com os portugueses continuaram, expressas em movimentos como os “mata-marotos”, face mais extrema do antilusitanismo nos anos seguintes.

Grupos de homens livres, pobres, negros libertos, pequenos proprietários e escravos, protagonizaram perseguições, ameaças, invasões, saques, apedrejamentos, espancamentos e até assassinatos de portugueses, sempre aos gritos de “morra o maroto”.

O “Guerras de Independência no acervo do Arquivo Nacional” terá ainda as contribuições de Marcelo Cheche Galves, da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), Flávio José Gomes Cabral, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Sérgio Guerra Filho, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, da Uerj. Renata William do Vale coordena o livro com a pesquisadora Viviane Gouveia.

A coordenadora pondera que não é possível cravar um número exato de vítimas nas guerras de Independência, principalmente porque nelas havia muitos voluntários:

—Havia um sentimento de pátria profundo nas províncias, acima da identidade nacional. Antes de se considerar brasileiras, essas pessoas se viam como maranhenses, paraenses e pernambucanas, por exemplo. Se era para ser independente, por que se sujeitar a outra monarquia? O projeto do Rio prevaleceu, mas não apenas na base da conversa. Foi um período (violento) de formação da nação e da identidade nacional.

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