Ianomâmis vão a Boa Vista, em cinco dias de viagem a pé, para socorro médico

Èxodo de indígenas é o retrato do desespero em que vive parte dos integrantes de cerca de 250 aldeias entre Amazonas e Roraima.

Por Cyneida Correia — Boa Vista


Pai, filho e cunhado da famíia Sanöma não conseguem atendimento em aldeia; “não tem remédio, nem saúde, nem comida” Cyneida Correia

Ao fim de cinco dias de caminhada sem carona e sem ter como comer direito, a família Sanöma, pai, filho e cunhado, chegou a Boa Vista em busca de atendimento médico e assistência. Os termômetros marcavam mais de 36 ºC. Os três são de um dos subgrupos ianomâmis obrigados a percorrer uma “rota da sobrevivência” longa, para além de seu território, com o agravamento da crise sanitária. Da aldeia até a capital de Roraima, foram mais de 200 quilômetros atravessando rios, cidades e estradas por dentro da selva amazônica.

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— Não tem remédio, nem saúde, nem comida. Muita briga. Trouxe a família para atendimento. Voltamos andando — disse um deles, em um português precário, de difícil entendimento, antes de embarcarem numa carona da reportagem até o Centro, o que lhes exigiria pelo menos mais 30 quilômetros de caminhada.

Movimento pendular

O êxodo de indígenas é um movimento pendular em que os ianomâmis deixam as aldeias em busca de socorro e depois voltam, mas ainda convalescentes, a pé. É o retrato do desespero em que vive parte dos integrantes de cerca de 250 aldeias entre Amazonas e Roraima. Nômades e coletadores, os ianomâmis caminham debilitados pela fome, pelas verminoses, pela malária e pela pneumonia.

As peregrinações foram denunciadas pelo presidente do Conselho de Saúde Indígena do Distrito Especial Sanitário Indígena Yanomami, Júnior Hekurari, em 4 de outubro, para o então coordenador distrital de saúde da região, Ramsés Almeida da Silva. Ex-vereador pelo Republicanos, então da base do presidente Jair Bolsonaro, Ramsés foi afastado no mês seguinte após uma operação da Polícia Federal sobre desvio de medicamentos destinados aos ianomâmis.

Criança diante de hospital de campanha em Boa Vista — Foto: Cyneida Correia

O ofício com a denúncia é talvez um dos mais dramáticos entre os cerca de 20 documentos com alertas sobre a saúde ianomâmi na gestão Bolsonaro. Júnior relatou que pacientes da ala Xirixana e Xiriana da Casai estavam retornando para a floresta a pé, atravessando aproximadamente 240 quilômetros, por falta de aviões e helicópteros. Nada foi feito. Os indígenas ainda são vistos perambulando por Boa Vista. “O conselho tem sido informado por lideranças indígenas e associação que vários pacientes estão de alta há muito tempo, esperando por voos de retorno para suas comunidades e os mesmos têm demorado demasiadamente”, alertou Hekurari.

Os três ianomâmis encontrados na estrada na quinta-feira estavam vestidos de camisa de malha e shorts. Municípios limítrofes da reserva costumam doar roupas para as aldeias. Parte da etnia é de contato recente, e por isso, tem dificuldade de se comunicar.

— Os ianomâmis foram abandonados. É uma comunidade que se dispersou e faz alguns anos que ficou sem saúde. Eles vêm por conta da destruição da terra indígena. Alguns já se deslocaram para fazendas no entorno e são vítimas de exploração, aliciamento. Os que vêm para cidade andando ficam vulneráveis, sem assistência. É uma área vermelha para eles — explica a antropóloga do Conselho Indígena Missionári Gilmara Fernandes.

A única forma de se chegar lá aos pontos mais profundos da floresta da Terra Indígena Yanomami, onde a maior parte se dos indígenas se encontram, é por via aérea. O território tem quase 100 mil km², pouco mais do que a área de Pernambuco (98 mil km²).

O governo de Roraima diz que os indígenas são assistidos pelo governo federal, e os que circulam por Boa Vista são responsabilidade da Funai. A prefeitura da capital Boa informou que atende os ianomâmis, e o Hospital da Criança Santo Antônio internou, no ano passado, 703 indígenas. Nesta semana, havia 46 são crianças ianomâmis internadas.

Piora a partir de 2017

As principais causas das internações são diarreia aguda, gastroenterocolite aguda, desnutrição, desnutrição grave, pneumonia, acidente ofídico e malária.

—A falta de fármacos simples, como s para combater verminoses, aceleraram a tragédia ianomâmi. Estima-se que 10 mil crianças, de um total de cerca de 14 mil, deixaram de receber remédios, agravando a subnutrição. Havia políticos que nomeavam agentes de saúde e loteavam cargos-chave para direcionar licitações — detalha o procurador da República Alisson Marugal, que denunciou esta semana o descaso com os indígenas no governo Bolsonaro e investigou o desvio de remédios na operação que levou ao afastamento de Ramsés.

Embora haja registro de subnutrição infantil no território ianomâmi pelo menos desde 2009, Marugal diz que a situação se agravou a partir de 2017 e atingiu seu ápice no ano passado. Segundo o procurador, entre o fim de 2021 e o ano passado, 300 crianças com sinais de desnutrição precisaram ser transferidas para tratamento em Boa Vista, por causa do garimpo ilegal e da omissão do Estado.

Os samöna vivem no alto do Rio Auaris, no extremo Noroeste de Roraima. Mas a família contou que veio através de Mucajai, no Norte do estado. Muitos ianomâmis estão se deslocando por conta do garimpo em seus locais de origem.

Na Casa de Apoio à Saúde Indígena, em Boa Vista, os profissionais têm uma rotina de guerra, se dividindo entre crianças e adultos, macas e redes, usadas por serem mais familiares para os indígenas. Sem saber português, se comunicam por gestos, mas às vezes isso não é suficiente. Exames são fundamentais.

Uma médica que não quis se identificar contou que, devido ao desmonte de distritos sanitários, muitas vezes não havia o que fazer nas aldeias. O retorno a Boa Vista podia ser um momento de angústia, pela irregularidade no pagamento dos voos pelo poder público.

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