Entenda a crise do NFT, que teve queda de 46% após movimentar US$ 17 bilhões em 2021

Especialistas debatem se situação vai piorar ou se o mercado passa por uma reestruturação, após pico de vendas no ano passado e obras arrematadas por preços recordes

Por Nelson Gobbi — Rio de Janeiro


NFT da coleção PsychoKitty, criada pelo artista Ugonzo, registrado em Londres, em 30 de dezembro de 2021 — Foto: JUSTIN TALLIS/AFP

O mundo mal havia aprendido que NFT é a sigla para “token não fungível” (em inglês, “non fungible token”) e o ano de 2021 lançou o mercado de arte digital às alturas, atraindo atenções para além dos iniciados no universo cripto a partir do leilão da colagem digital “Everydays: The first 5000 days”, do americano Beeple, arrematada por US$ 69,3 milhões na tradicional Christie’s. Desde então, parecia não haver limite para o que poderia ser vendido como um ativo virtual transformado em um item exclusivo graças a uma espécie de rastreamento digital garantido por um sistema de registro de transações, a blockchain.

Colecionáveis, como a série “Bored Apes” (das imagens dos macaquinhos entediados) ou a “CryptoPunks”, chegaram a movimentar mais de US$ 1 bilhão. O NFT do primeiro tuíte do cofundador do Twitter Jack Dorsey foi vendido por US$ 2,9 milhões. Equipes esportivas e marcas correram para lançar seus próprios tokens. Nem os memes escaparam: a imagem que gerou o viral “Disaster girl” foi vendida por US$ 500 mil, assim como o vídeo “original” do YouTube de “Charlie bit my finger”, no qual um bebê morde o dedo do irmão, comprado por US$ 760 mil.

Estima-se que o mercado de NFT — termo que, não por acaso, foi escolhido como a “palavra do ano” na tradicional eleição promovida pelo dicionário britânico Collins — movimentou globalmente cerca de US$ 17,6 bilhões em 2021. As previsões pareciam ser ainda mais ambiciosas para os meses seguintes. Até que chegou 2022.

Veja obras que serão expostas no NFT.Rio

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Mercado está em queda após boom de 2021

Após um pico de 225 mil transações diárias, registradas em setembro de 2021, o montante chegou à média diária de 19 mil transações em maio, numa queda de 92%, segundo o relatório divulgado mês passado pelo site especializado Nonfungible. O portal também apontou outras quedas na comparação entre os primeiros quadrimestres dos últimos dois anos, como o número de vendas (-46%), o número de compradores (-30%) e o número de carteiras ativas (-25%). O citado tuíte de Dorsey tornou-se uma síntese deste momento. Sina Estavi, CEO da empresa de criptoativos Bridge Oracle e comprador do item digital, o colocou à venda em leilão em abril e a maior oferta que recebeu foi de US$ 14 mil, numa desvalorização de 99% em relação à compra original.

Um baque que acendeu o sinal amarelo de que a euforia no segmento poderia ter chegado ao fim. As explicações para a queda vão de questões que afetam o ambiente digital (queda dos bitcoins, número menor de produtores que a demanda dos compradores) até razões que afetam todo o mundo físico, como a tempestade perfeita envolvendo efeitos da pandemia, crise econômica global e guerra na Ucrânia. Analisando o fenômeno, especialistas se dividem entre uma possível crise do formato ou um momento de reestruturação do mercado.

— Era previsível que essa queda fosse acontecer. Havia um movimento especulativo muito forte naquele hype do ano passado, também impulsionado pela entrada de marcas, astros do esporte e da música no segmento — observa Byron Mendes, fundador da Metaverse Agency, focada em arte digital. — Houve uma corrida atrás do que estivesse disponível, como os colecionáveis estilo “Bored Apes” ou trabalhos de quem só entrou no mercado atraído pelos números. Essa queda pode ser positiva a longo prazo, porque vai baixar toda essa espuma e jogar mais luz sobre artistas com produções de qualidade.

Professor da Universidade de Queens, em Ontario, no Canadá, e autor do ensaio “Criptoarte: a metafísica do NFT e a tecnocolonização da autenticidade”, que aponta como o modelo se tornou uma forma cultural definida mais por sua configuração como mercadoria do que seu valor artístico intrínseco, Gabriel Menotti acredita que o ciclo de bolhas e crises seja próprio do meio cripto.

— A maioria dos trabalhos é classificada como criptoarte por usar o NFT como um registro de “posse”, sem realmente se engajar de maneira expressiva com a estrutura do meio. Isso cria uma relação de mercantilização que abre espaço para qualquer coisa ser chamada de criptoarte — observa o pesquisador e curador independente. — Como esse mercado, por ser desregulado e opaco, está pautado por insiders que se beneficiam das bolhas, é natural que a variação esteja mais ligada a este caráter especulativo.

Evento internacional no Rio

Idealizador do NFT.Rio, primeiro evento internacional do país voltado ao segmento, que vai ocupar a Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage entre 30 de junho e 3 de julho, Marcus Menezes acredita que, mesmo em seu momento de pico, o mercado ainda estava longe de atingir o número de colecionadores em potencial para obras em NFT.

— É um setor muito novo, que as pessoas não entendem direito. O boom criou alguns estigmas, como se o NFT fosse um mercado de milionários excêntricos, que pagam milhões em memes. A proposta do evento é justamente popularizar estas obras. Além das expostas na EAV, teremos outras em 300 painéis digitais espalhados pela cidade — adianta Menezes, criador da coleção “CryptoRastas”, citando obras como a do fotógrafo americano Justin Aversano. — Estamos passando por um processo de amadurecimento, como acontece em qualquer mercado. E mesmo que o setor esteja passando por uma queda em geral, a criptoarte segue bem valorizada. Ainda há um mundo a ser explorado por artistas e colecionadores.

Para o presidente da Bolsa de Arte, Jones Bergamin, a incerteza econômica global leva a investimentos em segmentos já consagrados e conhecidos dos colecionadores:

— O NFT ainda é um mercado incipiente, há muitas dúvidas ainda sobre o seu funcionamento. A volatilidade é grande, o que afasta o colecionador tradicional. É algo que pode vingar, mas hoje continua bastante restrito a quem tem familiaridade com o meio dos criptoativos.

CEO da plataforma de arte digital Tropix, Daniel Peres Chor acredita que após a sobrevalorização de alguns ativos digitais no ano passado, o mercado está chegando a um platô mais real. Chor aposta na presença do NFT em eventos físicos, como a feira ArPa, cuja primeira edição será encerrada amanhã , no Pavilhão Pacaembu, em São Paulo. No evento, a Galeria Raquel Arnaud expõe a obra “Contrato social”, de Ding Musa, produzido em parceria com a Tropix.

— Estamos vendo o começo de uma transição entre um momento em que o mercado estava mais ligado aos criptoentusiastas para algo aberto a todo tipo de público — aposta Chor. — A queda nos ativos mais midiáticos está em evidência agora, mas outras aplicações do NFT, como a certificação digital pelas galerias, inclusive de obras físicas, está em plena expansão.

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