No Pavilhão Espanhol da Exposição Universal de 1937, em Paris, todas as atenções estavam voltadas para os 27 metros quadrados do painel “Guernica”, pintado por Pablo Picasso como denúncia contra a guerra civil travada em seu país à época e os horrores da ditadura de Francisco Franco, revelados ao mundo na mostra internacional. Além da obra histórica, os visitantes do pavilhão também tiveram a oportunidade de ver trabalhos que materializavam uma amizade igualmente monumental. A exposição parisiense foi uma das ocasiões em que as obras de Alexander Calder (1898-1976) e de Joan Miró (1893-1983) foram apresentadas juntas: no evento, o americano mostrou sua “Fonte de mercúrio” e o espanhol, seu painel “O ceifador”. A partir de hoje, a Casa Roberto Marinho entra para a lista de instituições a destacar a parceria de décadas entre os artistas, com a abertura da mostra “Calder + Miró”.
Com mais de 150 itens, incluindo obras de brasileiros que se conectam com a produção dos dois, a exposição reúne 70 obras de Calder e 28 de Miró, em variados suportes e técnicas. Incluindo pinturas, móbiles, esculturas, gravuras, desenhos, joias, têxteis, entre outras experimentações, o conjunto foi selecionado pelo curador, galerista e editor Max Perlingeiro, convidado por Lauro Cavalcanti, diretor da Casa, para organizar a exposição.
— É uma mostra que poderia estar em qualquer museu do mundo, com uma representatividade enorme da obra dos dois, e mostrando a complexidade desta produção — ressalta Perlingeiro. — Eles se conheceram em 1928, em Paris, e não se largaram mais, até a morte de Calder. Um era absolutamente erudito, o outro era um americano ruidoso, mas uma pessoa encantadora. E essas personalidades opostas se tornaram “amigos de alma”, como Miró costumava dizer.
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Quase todas as obras da dupla expostas vêm de coleções particulares brasileiras, mas o conjunto conta também com empréstimos de instituições como o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), o MAM do Rio e o Masp (Museu de Arte de São Paulo).
— O público tem uma oportunidade única de ver obras destes expoentes da arte do século XX, de acervos privados. Mesmo fora do país, seria difícil ver um conjunto igual, com desenhos e pinturas surpreendentes do Calder, e também trabalhos do Miró em suportes menos conhecidos — observa Lauro Cavalcanti. — São artistas que ficaram bastante ligados à arquitetura brasileira, sobretudo Calder. Nos projetos de casas feitos pelos arquitetos modernos, o móbile era quase que um item obrigatório.
Veja obras da exposição 'Calder + Miró'
A ligação da dupla com o Brasil é reforçada na seção curada por Paulo Venancio Filho, que os coloca em relação com obras de nomes como Abraham Palatnik, Lygia Clark, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Ivan Serpa, Sérvulo Esmeraldo e Mira Schendel.
— Ainda que não se possa, a rigor, apontar uma influência direta, algumas coisas que eles fizeram a partir do final da década de 1920 tiveram paralelos na abstração brasileira dos anos 1950 a 1970. Calder foi um dos primeiros a usar cor nas esculturas, como a gente viu depois nas cores vivas nas obras do Weissmann, no “Relevo espacial” do Oiticica — aponta Venancio. — Miró, apesar de ligado inicialmente ao surrealismo, criava formas que não estão presas ao fundo, elas flutuam no espaço. É algo que podemos ver também nesta geração de abstratos.
Outros segmentos da exposição, organizados pelas pesquisadoras Roberta Saraiva Coutinho e Valeria Lamego, detalham a conexão individual de cada um dos dois artistas com o Brasil. O primeiro destaca as várias passagens de Calder pelo país, a partir 1948, quando expôs no Palácio Capanema e no Masp; e o segunda mostra que Miró, apesar de nunca ter passado por aqui, se conectou com o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Ambos também fizeram importantes doações no início dos anos 1970 ao Museu da Solidariedade Salvador Allende, no Chile, a pedido de seu organizador, o crítico brasileiro Mário Pedrosa, então exilado no país.
— Os dois são os primeiros artistas a quem o Mário recorre, pela notoriedade que tinham nos anos 1970. E eles fazem doações muito consistentes. Um dos itens documentais mais raros da mostra é justamente o catálogo do museu chileno, com capa assinada por Miró — diz Perlingeiro. — Calder se identificava com o Brasil, pela sua personalidade. Quando a (arquiteta e urbanista) Lota de Macedo Soares vendeu a Fazenda Samambaia, em Petrópolis, e deu uma festa de despedida, ele se encarregou da ornamentação, feita de papel craft. Já Miró nunca veio aqui, mas teve a amizade com João Cabral, que ia a seu ateliê diariamente, amenizando sua enorme tristeza quando Franco baniu suas obras da Espanha.
Além das obras, que ocupam toda a casa e a área dos jardins — com esculturas como “Femme” (1969), do espanhol, e “Bent propeller” (1970), do americano — a mostra terá a projeção do documentário “Joan Miró de perto”, cedido pelo Canal Curta, e um programa educativo criado pela equipe de Educação da Casa em colaboração com o artista Fernando Cesar Sant’Anna, com jogos e equipamentos interativos desenvolvidos especialmente para a ocasião. Para o diretor da Casa Roberto Marinho, a exposição é importante por ressaltar como a produção dos dois se beneficiou da troca e da amizade entre eles.
— Era uma relação de camaradagem e de competição positiva, claramente um alimentava o outro. Os críticos faziam esse paralelo, dizendo que Calder fez as cores e formas de Miró saírem da tela para ganhar o espaço — comenta Cavalcanti. — É uma exposição muito afetiva, e tem algo de celebração da vida e da alegria, que é importante poder ser realizada neste momento.
Onde: Casa Roberto Marinho. Rua Cosme Velho 1.105 (3298-9449). Quando: Ter a dom, do meio-dia às 18h. Abertura dia 18/8 para convidados e, ao público, dia 19/8. Até 20/11. Quanto: Grátis (às quartas-feiras) e R$ 10. Classificação: Livre.