Artigo: Se 2023 problematizou Picasso, 2024 pode consagrar Dalí

Em 2023, os 50 anos de morte do cubista quase foram marcados por seu cancelamento. Mas, em 2024, os 120 anos do surrealista podem fazer jus a seu vanguardismo

Por , Em El País


Os artistas espanhóis Pablo Picasso (1881-1973) e Salvador Dalí (1904-1989) Diculgação

Recentemente, perguntei a uma pessoa intimamente associada à comemoração do 50º aniversário da morte de Picasso — um 2023 repleto de eventos — quais novas perspectivas a celebração havia trazido. Ele não hesitou: a comemoração reforçou o vínculo de Picasso com a Espanha, destacando seus laços menos conhecidos com o cotidiano, desde a infância na Coruña até passeios no Prado.

A resposta me fez parar para pensar. Picasso, apesar da pouca simpatia das autoridades franquistas, foi um dos maiores representantes da “espanholidade”. E, como mostra Annie Cohen-Solal em “Un étranger nommé Picasso” (“Um estrangeiro chamado Picasso”, sem edição brasileira) teve dificuldades para ser aceito na França, onde viveu a maior parte da vida. Perseguido como anarquista, excluído de coleções públicas por décadas, com várias tentativas fracassadas de obter a nacionalidade francesa... Ao chegar a Paris, o artista nascido em Málaga era tão estrangeiro quanto seus personagens de circo ou os boêmios em sua gravura “A refeição frugal”.

No entanto, pode-se argumentar que, na Espanha, Picasso é visto como “muito francês”, um personagem da nouvelle vague com sua mariniere, um uniforme de marinheiro que Chanel transformou em moda. O que é interessante é a maneira como Picasso lidou com essas ambivalências, a adoção deliberada de cada estereótipo em sua personalidade, assim como em sua obra, repleta de misturas e apagamentos. Nesse aspecto, as inúmeras fotografias para as quais Picasso posou ao longo de sua vida são eloquentes.

Por meio delas, a ideia de um artista absorvido pela criação, indiferente à sua imagem pública, aquela que a narrativa canônica opõe a Dalí, e não apenas por causa de suas ideias políticas, é desfeita. Dalí é a celebridade e Picasso, o criador; Dalí é o personagem e Picasso, o artista sem falhas. Assim, os defensores de Picasso desprezam os defensores de Dalí, apelando para a desculpa perfeita: Picasso era um herói republicano e Dalí, um mundano conservador, fascinado por dinheiro e fama.

No entanto, essa polarização — a palavra da moda — é outro tipo de cenografia e talvez ambos compartilhem mais do que a história canônica — de ambos os lados — nos faz acreditar. Ambos, excelentes pintores e artistas, foram figuras da mídia por opção, pois aquele que posa na frente da câmera controla a narrativa.

Talvez tenha faltado isso entre as inúmeras exposições do ano Picasso: um olhar aprofundado sobre o artista Picasso que revelasse sua relação com o poder das imagens e da mídia de massa; um instagramer Picasso que exibisse seu interesse na construção do “personagem Picasso”, semelhante ao de Dalí. Uma pena, pois isso teria oferecido uma releitura contemporânea desse artista.

Nesta era de cancelamentos, nos envolvemos principalmente na relação de Picasso com o gênero — a mostra “It’s Pablo-matic”, no Brooklyn Museum, foi o maior exemplo. Ou talvez este Ano Picasso, projeto estatal entre a França e a Espanha, tenha optado, antes de tudo, pelo grande artista Picasso para saldar a dívida histórica que ambos os países, ao que parece, tinham com ele por diferentes motivos. Na catarse, não havia lugar para o performativo.

Mas assim que o “Ano Picasso” chegou ao fim, Dalí logo assumiu o controle do 120º aniversário do seu nascimento, em 1904. Sem dúvida haverá revisões e eu me pergunto quais serão elas, além das velhas censuras políticas. Será interessante repensar Dalí a partir das perspectivas #MeToo e LGTBQ+ que permearam tantas conversas sobre Picasso, pois nesse ponto o currículo do catalão é impecável, entre García Lorca, a andrógina Amanda Lear e seu grande amor, Gala, que ele não apenas pintou. Ele dividiu com ela a autoria de “suas melhores obras”, construindo uma certa identidade líquida em uma assinatura de uma única pessoa: Gala Salvador Dalí. Nesse quesito, ninguém como Dalí anunciou que no futuro as coisas nunca mais seriam as mesmas.

Talvez tenha sido seu fascínio pelo futuro que o levou a se interessar desde cedo pelo DNA. Lembro-me de vê-lo na televisão da minha infância, com seu bigode, falando sobre estruturas moleculares. A maioria interpretava como uma piada: outra das excentricidades do artista. Naquela Espanha em preto e branco, Dalí estava falando sobre o futuro e eu me pergunto agora se essa era sua forma de rebelião contra o estabelecido. Em questões relacionadas à ciência, Dalí estava bem à frente dos telespectadores, incluindo Picasso, quase com certeza.

Como uma prévia da celebração, a Gala Salvador Dalí Foundation trouxe da Escócia o conhecido “Cristo”, pintado em 1951. A exposição reproduz a cenografia idealizada pelo próprio Dalí, e a iluminação dá uma nova imagem da impressionante pintura. E se fosse muito mais do que uma imagem religiosa? Entre o “Cristo” e o Cap de Creus, uma paisagem recorrente para o pintor, um amálgama de nuvens aparentes reforça a separação entre o céu e a Terra. Mas não, elas não são nuvens. Elas lembram mais as primeiras imagens do nosso planeta tiradas do espaço sideral e publicadas no início da década de 1950. De repente, a perspectiva da pintura revela uma premonição do mundo visto de fora: a conhecida imagem da Terra vista da Lua, publicada anos depois.

Se é verdade que o “Ano Picasso” serviu para falar de gênero e para devolver Picasso à sua vida cotidiana na Espanha, talvez a comemoração de Dalí sirva para repensar sua extraordinária atualidade; como naquela entrevista à televisão ele estava falando de algo fundamental que intuiu antes de qualquer outra pessoa: a paixão pela ciência.

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