Exposição em SP mostra como Claudia Andujar criou linguagem própria para retratar sonhos ianomâmis

Mostra apresenta pesquisa estética da fotógrafa, que se tornou uma aguerrida defensora dos povos indígenas

Por — São Paulo


Foto da série “Reahu, o invisível”, que retrata os transes xamânicos dos ianomâmis Claudia Andujar

A história é famosa: em 1976, a fotógrafa Claudia Andujar e o missionário Carlo Zacquini subiram num fusca preto e, em 13 dias, venceram os mais de quatro mil quilômetros que separam São Paulo dos territórios ianomâmis, em Roraima. Naquela época, Andujar, hoje com 92 anos, já era uma aguerrida defensora dos povos indígenas. Fotografava a vida comunitária nas aldeias e a devastação provocada pela colonização da Amazônia. Os ianomâmis achavam o carro da fotógrafa engraçado, diziam que parecia um watupari (urubu) sem asas.

Uma réplica do fusca preto está na mostra “Claudia Andujar — Cosmovisão”, que abre nesta quarta-feira (3) no Itaú Cultural, em São Paulo. Em cartaz até 30 de junho, a exposição apresenta 135 obras da artista e narra como ela forjou uma nova linguagem fotográfica — capaz de retratar até mesmo o que não é captado pelas lentes, como os sonhos dos povos da floresta.

Fotografia tirada por Claudia Andujar em viagem para Roraima, em 1976 — Foto: Claudia Andujar

Lente de ampliar

Uma das protagonistas da luta pela demarcação das terras indígenas, Andujar nasceu na Suíça, em 1931. Filha de um judeu húngaro morto em um campo de concentração nazista, ela estudava pintura quando chegou ao Brasil em 1955, após alguns anos em Nova York. Foi incentivada a fotografar por Pietro Maria Bardi, fundador do Masp. Virou fotojornalista e conheceu os ianomâmis durante uma reportagem na Amazônia.

Curador da exposição, Eder Chiodetto explica que Andujar faz parte de uma geração, que, influenciada pela psicodelia dos anos 1960, apostou em experimentações formais e tecnológicas para “ampliar as possibilidades da fotografia”. Em 1971, ela apresentou no Masp a instalação “Sônia”: projetou fotografias de uma jovem baiana que sonhava em ser modelo nas paredes do museu e, para criar uma atmosfera lisérgica, usou espelhos, filtros coloridos, faixas de plástico translúcido e a canção “I had a dream”, de John Sebastian, tocada no Festival de Woodstock, em 1969. Uma releitura da instalação, assinada por Leandro Lima, está em exibição no Itaú Cultural.

Entre os anos 1960 e 1970, Andujar trabalhou na revista Realidade. Em 1967, ela retratou homens gays no Rio e em São Paulo para uma reportagem sobre homossexualidade. No ano passado, essas fotografias foram isoladas numa exposição dedicada a Andujar em Budapeste, na Hungria. No país, onde há leis anti-LGBT, a série só pode ser vista por maiores de 18 anos, embora não houvesse nenhum conteúdo sexual explícito. A fotógrafa brinca com sombras, ângulos e desfoques para ocultar a identidade dos personagens.

As estratégias de Andujar para forçar os limites da fotografia são inúmeras: filme infravermelho (que produz uma inversão cromática, tingindo de sangue o verde da floresta), múltiplas exposições, projeção de sombras, iluminação à luz de velas ou abajures, revelação a altas temperaturas para craquelar o negativo, fusão digital de imagens etc.

Nos anos 1970, ela adicionou cor a fotografias em preto e branco colocando placas de acrílico sobre as imagens. Por sugestão de Chiodetto, o curador, ela reciclou essa técnica para produzir 11 peças inéditas para a exposição: justapôs peças acrílicas coloridas a fotografias da série “O voo de Watupari”, tiradas ao a bordo do fusca-urubu que a levou até Roraima.

Foto da série "Homossexuais", de Claudia Andujar — Foto: Claudia Andujar

Exposição do transe

Toda essa experimentação estética, diz Chiodetto, culmina nas séries que retratam os transes xamânicos e os sonhos dos ianomâmis. Ainda nos anos 1970, Andujar fotografou o Reahu, ritual em que os indígenas inalam a yãkoana, um pó alucinógeno, e entram em contato com os xapiri pë, os espíritos da floresta. Para registrar a comunhão entre corpos e espíritos, Andujar investiu em múltiplas exposições, baixou a velocidade do obturador e brincou com o flash para criar imagens cheias de pontos de luminosos, que representam os xapiri pë.

Em 2002, revistando seu acervo, ela descobriu por acaso como retratar a vida onírica e espiritual dos ianomâmis. O resultado foi a série “Sonhos Yanomami”, ponto alto da exposição.

— Ela conta que, em 2002, vendo slides na mesa de luz, acidentalmente pegou dois de uma vez só e viu duas imagens justapostas. Percebeu tinha alguma coisa ali. Entrou num frenesi e começou a justapor fotografias escaneá-las e fazer cópias, criando novas imagens. Mandou tudo para Davi Kopenawa, que disse que aquelas imagens se pareciam muito com o que os indígenas veem durante os transes xamânicos — diz Chiodetto. — Esse é o ápice de décadas de experimentação. Ela consegue levar a fotografia a representar o não visível.

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