Público esquecido em cinema do RJ ganha sessão especial e ingressos ilimitados: 'De rejeitados a invejados'

Diretora-executiva responsável pelo Estação Net Rio pretende criar evento para público passar uma noite dentro do cinema, em festa do pijama

Por — Rio de Janeiro


Público esquecido no cinema Estação Net Rio, em Botafogo ganha sessão especial: 'Rejeitados por um dia, amados para sempre' Ana Branco/Agência O Globo

Entre rodadas liberadas de pipoca, pão de queijo, vinho e cerveja, os rejeitados descobrem o sabor da vida. Está aí o resumo do último capítulo da trama de ares absurdos que se desenrolou recentemente no Estação Net Rio, tradicional cinema de rua em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Uma semana após serem esquecidos por funcionários e ficarem presos no local — depois da última sessão do filme "Os rejeitados" —, espectadores foram agraciados, neste sábado (3), com uma projeção especial de "O sabor da vida", produção inédita de Anh Hung Tran protagonizada por Juliette Binoche (e com previsão de estreia em 29 de fevereiro).

O clima, na ocasião, era de festa. Como compensação pelo transtorno, o Grupo Estação distribuiu aos cerca de 30 prejudicados um cartão com direito a ingressos ilimitados para 2024 — com acompanhante e pipoca. Em cartazes colados nas paredes do estabelecimento, lia-se: "Rejeitados por um dia, amados para sempre". E também "cobiçados", como ouvia-se no saguão do cinema.

— Eles foram de rejeitados a invejados — murmurou uma senhorinha, ao apontar para o grupo. — Para mim, seria um sonho isso tudo. Infelizmente, não fiquei presa naquela sessão.

A fachada do cinema Estação Net Rio, em Botafogo — Foto: Alexandre Cassiano

O reencontro inspirou, entre os personagens, uma análise esmiuçada deste roteiro improvável. Afinal, como se cruzaram exatamente os caminhos de cada "rejeitado"?

O casal de aposentados Ruth Kauffmann e Michel Ladezenski estava sem pisar em um cinema há cerca de um ano — pois bem, os dois decidiram de repente romper esse hiato, e deu no que deu. Pais de crianças pequenas, o engenheiro Júlio Guedes e a servidora pública Domitila Guedes só saíram de casa porque queriam aproveitar algumas horas de descanso longe dos filhos, em meio ao escurinho, num cinema um pouco mais afastado. Já a advogada Viviane Andrade havia tirado o dia para "maratonar" filmes indicados ao Oscar: ela viu a sessão de "Vidas passadas", emendou com "Segredos de um escândalo" e adentrou o início da madrugada, por que não?, vidrada no longa de Alexander Payne. O resto, como se sabe, é história.

— Tenho amigos que estão super felizes só porque podem dizer que conhecem alguém que passou por este famoso caso — brinca Viviane. — Foram muitas emoções.

Funcionários se desculpam

Adriana Rattes (à esquerda) e funcionários do Estação Net Rio se desculpam com público após fecharem cinema com sessão em curso — Foto: Ana Branco/Agência O Globo

Temporariamente afastados de seus cargos, os funcionários responsabilizados pelo fechamento indevido das portas do cinema também estiveram na sessão especial, neste sábado (3). Antes do início do filme, ambos se desculparam com os clientes, e sem deixar de lado o bom humor.

— Quero fazer um convite para vocês continuarem vindo para esse lugar tão abençoado. Espero que a gente continue cada vez mais com esses encontros, permitindo-se viver experiências boas aqui dentro. Acho que é uma fase marcante, porque está todo mundo feliz, né? — gracejou a atendente Rodrigo Obtusa, arrancando gargalhadas da plateia. — No meu caso, também estou feliz, aprendendo com um erro, sabe? E dando a volta por cima.

Diretora-executiva do Grupo Estação, Adriana Rattes ressalta que toda a equipe passará por um novo (e intenso) treinamento. E revela que, em breve, vai preparar uma limonada com esse limão. Ainda neste semestre, ela pretende pôr em ação uma "festa do pijama" no local — sim, um evento voltado para quem quiser passar uma noite no cinema, em segurança. Sem dramalhão. Sem rejeição.

O casal de dentista Luciana Licinio e Vitor Alencastro: presos no cinema — Foto: Ana Branco/Agência O Globo

Fato é que os cerca de 30 minutos em que um grupo de desconhecidos permaneceu à deriva num cinema — justamente após a sessão de "Os rejeitados", comédia sobre pessoas obrigadas a passar, contra a vontade, um longo período juntos — vêm ocupando o espaço de um longa-metragem na cabeça de muita gente. Impossível esquecer todos os detalhes desta trama inventiva:

— Foi uma experiência em 4D — ri a cirurgiã-dentista Luciana Licinio, de 44 anos, que viveu a situação ao lado do marido, o também dentista Vitor Alencastro, de 48 anos. — Lembro de ficarmos tranquilos depois de vermos que havia água gelada no bebedouro e banheiros abertos. Até que uma galera mais desesperada teve a ideia de tentar quebrar a porta da rua com as cadeiras, algo que não foi feito. É aquilo: cada um vivencia situações-limite de maneiras diferentes. Isso ficou muito claro aqui.

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Em meio às incertezas, houve quem circulasse por todo o cinema — no breu, com a ajuda das lanternas de celulares —, acreditando que algum funcionário pudesse estar dormindo numa das salas:

— Achamos que estávamos sendo alvos de uma pegadinha — rememora o engenheiro Júlio Guedes. — Rodamos todo esse cinema, no escuro. Fomos abrindo portas, subindo escadas, entrando em várias salas, inclusive nas salinhas de projeção... E íamos dando tchau para todas as câmeras, imaginando que alguém pudesse nos ver.

A psiquiatra Bernadete Gomes guarda na memória os instantes de tensão — e de dúvida constante acerca do tempo em que a turma ficaria trancafiada no cinema — diante da ausência de resposta da polícia e do Corpo de Bombeiros, que chegaram a ser acionados por telefone.

— Foi pânico geral. Quando os funcionários apareceram na rua e finalmente abriram a porta para nos libertar, eu só queria sair dali — repassa ela, que ao ler uma reportagem do GLOBO tomou ciência de que o Grupo Estação estava atrás de cada um dos espectadores para oferecer um acordo amigável. — Peguei o jornal e falei: "Meu Deus, eu estava ali!". Vim correndo para o cinema, para me manifestar.

Ruth Kauffmann e Michel Ladezenski celebram passe livre para cinema após sufoco de ficar preso no local — Foto: Ana Branco/Agência O Globo

Hoje, todos os envolvidos nessa história cultivam planos cinematográficos. Com o passe livre para o Estação Net Rio em mãos, a professora e nutricionista aposentada Ruth Kauffmann, de 70 anos, prevê um futuro salpicado com doses exageradas de pipoca:

— Não vinha ao cinema há muito tempo, já que meu marido é viciado em Netflix — dispara ela, com o companheiro ao lado. — Agora não quero nem saber...! Seremos frequentadores assíduos deste cinema.

Michel Ladezenski, de 68 anos, rebate a mulher:

— Depende do filme que iremos ver, né?

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