Atacada por um urso na Sibéria, antropóloga escreve livro sobre sua reconstrução física e intelectual

Atração da Flip 2022, Nastassja Martin mistura recursos literários e ensaísticos e afirma que a literatura pode ser 'ferramenta política poderosa para os cientistas'

Por Ruan de Sousa Gabriel — Paraty


A antropóloga Nastassja Martin, que teve o parte do rosto reconstruído após ser atacada por um urso na Rússia Divulgação

São poucos os intelectuais que vivem no próprio corpo as ideias que pesquisam. A antropóloga francesa Nastassja Martin, que participou ontem da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao lado de Tamara Klink, é uma dessas exceções. Ela experimentou de maneira brutal a célebre divisão entre natureza e cultura, que opôs a impetuosidade do mundo natural à técnica com que os homens tentam subjugá-lo.

Munida da cultura ensinada nas universidades francesas, Nastassja foi à Sibéria estudar os even, povo indígena da região que, após a dissolução da União Soviética, voltou à tundra para viver da caça, da pesca e da coleta, como seus antepassados. Lá, ela foi atacada por um urso que destroçou seu maxilar. Mas a antropóloga levou a melhor na briga. Teve o rosto reconstruído por cirurgiões na Rússia e na França. “Meu maxilar de tornou palco de uma guerra fria hospitalar franco-russa”, escreveu ela no livro “Escute as feras” (Editora 34).

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A briga com o urso siberiano desorientou Nastassja, que, em vez de escrever o livro de antropologia que ela fora pesquisar na Rússia, dedicou-se a narrar seu processo de recuperação. Não só físico, mas também intelectual. Ser atacada por um urso mexeu com suas certezas e crenças. Todo mundo tinha um comentário a fazer sobre o ocorrido. Seus amigos even disseram que ela se transformara em uma miêdka, que é como eles chamam aqueles que sobrevivem ao encontro com um urso, mas ficam marcados, tornando-se metade humanos, metade ursos.

Nastassja, porém, foi em busca de sua própria interpretação. O resultado é “Escute as feras”, livro que mistura recursos literários e ensaísticos com um bocado de antropologia. Ela diz que gostou da experiência de escrever mais livremente — “sem me preocupar com as citações” — e afirma que a literatura pode ser “ferramenta política poderosa para os cientistas”.

— Tenho um problema com o que os cientistas chamam “vulgarização”, com a ideia de que temos que simplificar nosso trabalho para que as pessoas entendam o que fazemos, como se as pessoas não fossem capazes de pensamento complexo. Talvez o problema sejam as palavras que usamos. Como antropóloga, quero que as pessoas percebam que há outras maneiras de se relacionar com o mundo — diz Nastassja, cujo livro virou hit nas redes sociais de escritores brasileiros.

O lado de cá do mundo

Esta é a primeira passagem de Nastassja pelo Brasil. Ela se mostra interessada pelas questões indígenas brasileiras — da “bancada do cocar” eleita para o Congresso aos livros de Ailton Krenak e Davi Kopenawa — e brinca que vai tentar mudar a passagem de volta a Paris para passar mais uns dias por aqui. Ela celebra a popularização do pensamento indígena na cultura, mas alerta: não devemos instrumentalizar o conhecimento dos povos originários, como se tivessem uma receita infalível para nos livrar dos problemas que criamos.

— Nós, ocidentais, instrumentalizamos tudo em nosso benefício: a natureza e a cultura. Como instrumentalizar a natureza nos levou às mudanças climáticas, agora queremos instrumentalizar culturas nativas em busca de soluções — critica. — Vejo a antropologia como um trabalho de tradução. Eu espalho, para fora da floresta, a palavra que esses povos querem compartilhar conosco. Essas palavras podem ter efeitos na nossa política e na nossa economia. Mas muitos povos não precisam dos antropólogos para fazer isso. Aqui no Brasil, por exemplo, Kopenawa e Krenak falam com sua própria voz.

O trabalho de Nastassja na Rússia acabou. Quando ocorreu a invasão da Ucrânia, no início deste ano, ela teve um desentendimento com Dária e Ivan, os dois even que ela mais cita no livro. Segundo ela, muito indígenas russos foram convencidos pelo discurso de Vladimir Putin.

— Durante a União Soviética, os indígenas foram completamente assimilados, mas sua cultura, o que chamamos de folclore, foi preservada em museus. Eles deixam de viver suas culturas para representá-las para o público. Perderam tudo. Tanto que o discurso de Putin tem muito apelo entre eles, especialmente entre os homens jovens. Putin promete que eles vão voltar a ser guerreiros fortes e respeitados, como seus antepassados — lamenta Nastassja, que, impedida de voltar à Rússia, ainda está pensando onde fará suas próximas pesquisas antropológicas. — Acho que vai ser para o lado de cá do mundo.

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