Até a manhã desta sexta-feira (24), a plateia do Auditório da Matriz ainda não havia ficado tão contrariada com o fim de uma mesa da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty. Mas quando a mediadora Adriana Ferreira Silva disse que o tempo da conversa “Uma prisão mortal”, com a crítica literária Denise Carrascosa, a arquiteta Joice Berth e a ex-deputada federal e jornalista Manuela D’Ávila havia acabado, um sonoro “ah” em desaprovação irrompeu na tenda lotada. Todo mundo queria mais. Restou aplaudir de pé.
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As três pensaram a construção das cidades a partir de um viés masculino, o encarceramento e a tortura de mulheres negras e o escrutínio da literatura produzida por autoras. Papos que provavelmente deixariam Pagu, a homenageada desta edição, orgulhosa. Ícone em filme, música e coletivos, a escritora, jornalista, poeta e crítica Patrícia Rehder Galvão (1910-1962) puxou o bonde feminino — e feminista — da programação, tanto oficial quanto paralela. Dos 44 autores desta edição, 32 são mulheres, muitas delas negras, LGBTQIAP+ e indígenas, com atuações que visam a multiplicar discussões além da esfera do feminismo branco.
— Quando escolhemos como escritora homenageada deste ano uma mulher engajada em lutas sociais e estéticas como a Pagu, estamos acionando os feminismos que estão presentes não só nas lutas e ativismos, mas também nas invenções, inovações de linguagem e reivindicações por respeito, equidade e visibilidade — diz Milena Britto, curadora da festa juntamente com Fernanda Bastos, que inseriu no calendário uma série de performances poéticas feitas majoritariamente por artistas femininas.
O movimento de enfocar atuações literárias, artísticas, acadêmicas e sociais de mulheres na festa vem desde o ano passado, quando a edição homenageou Maria Firmina dos Reis, negra e a primeira mulher a escrever um romance no Brasil. Ali, foram 43 autores, sendo 29 mulheres — entre elas duas mulheres trans, a argentina Camila Sosa Villada e a brasileira Amara Moira, dez anos depois da cartunista Laerte.
Agora, a programação não esperou tanto tempo para repetir uma escalação de uma escritora transgênero e trouxe a ativista trans espanhola Alana Portera, que lança seu primeiro romance, “Mau hábito”, pelo novo selo do grupo Record, Amarcord.
— A minha vida é tão política que é normal que se reflita na minha literatura. Não tenho a intenção de escrever uma literatura feminista, faço porque sou — diz Alana, cujo obra de estreia discorre sobre a vida de uma mulher trans até os 30 anos de idade, costurada à história de mitos gregos. — Meu feminismo é inclusivo, aberto à escuta e à observação, e eu gostaria que se aproximassem do meu livro sem preconceitos. A história, a priori, parece uma narrativa trans, mas é universal. As nossas vidas são universais.
Estrela da também muito aplaudida mesa “Contra a mentalidade decadente”, com Akwaeke Emezi, da Nigéria, a doutora em estudos de gênero Carla Akotirene levou para a Flip seu feminismo conectado com a diáspora africana. O resultado de seus mais recentes estudos está no livro “É fragrante fojado dôtor vossa excelência” (Civilização Brasileira), lançado em Paraty. A obra discorre sobre como há, em audiências de custódia (um direito de quem é preso em flagrante) do sistema jurídico, reproduções da ordem escravocrata colonial com a população negra, especialmente, mulheres.
Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2023 acontece em meio à chuva e falta de luz
— À medida que reposicionamos Academia e resistências literárias, estamos promovendo uma contracolonização, ou seja, desenvolvendo conhecimento e movimentando o feminismo a partir do Sul Global — diz Carla, que fala sobre temas como feminismo, ancestralidade e negritude para mais de 270 mil pessoas no Instagram.
Integrante do povo tabajara que vive perto de Ipueiras, a cerca de 400km de Fortaleza, Auritha Tabajara é uma das autoras indígenas na programação paralela da festa. Na mesa “Narrativas de mulheres e territórios”, anteontem, na Casa da Cultura, com a jornalista Maitê Freitas e a deputada federal do PSOL/RS Fernanda Melchionna (que lançou na Flip o livro “Tudo isso é feminismo?”), Auritha falou sobre sua experiência como ativista indígena e LGBTQIAP+ e como isso se conecta a demandas variadas.
— Sou uma mulher sapatão. Estou em vários espaços para falar das questões indígenas, mas também sobre questões de corpos. As lutas não podem estar separadas. Precisamos estar juntas para nos fortalecermos juntas — diz ela.