Realidade americana

A idiotização das sociedades capitalistas vem fazendo com que seja cada vez mais difícil usar a sátira e a ironia no cinema, na literatura ou na vida em geral

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O ator Jeffrey Wright, de American Fiction James Nachtwey para The New York Times

“Ficção americana”, é um filme escrito e dirigido por Cord Jefferson, com Jeffrey Wright no papel de um escritor atormentado pelo insucesso próprio e pelo sucesso alheio. Indicado a cinco Oscars, entre os quais o de melhor filme e o de melhor ator, “Ficção americana” tem tudo para se transformar no centro de um debate importante e necessário. Incompreensivelmente, não chegou às salas de cinema do Brasil. A boa notícia é que desde terça-feira, dia 27, passou a estar disponível no catálogo do Prime Video. Corram a ver.

No filme, Jeffrey Wright interpreta um escritor, Thelonius Ellison, — Monk para a família —, que se dedica há anos a escrever, para escassos leitores, romances densos e complexos, alguns dos quais atualizando mitos gregos (Percival Everett, autor do romance “Erasure”, no qual se baseia o filme, experimentou o mesmo em dois dos seus romances).

Thelonius, que, além de escrever, dá aulas de literatura americana, vê o seu plácido cotidiano ameaçado quando uma das suas alunas o acusa de racismo e abandona a sala aos prantos. A direção da escola repete a acusação, ameaçando despedi-lo. Aluna e professores são brancos. Incomoda-os que Thelonius, negro, use nas aulas a palavra nigger, ainda que num contexto plenamente justificado.

Sofrendo com a doença da mãe e a morte de uma irmã, Thelonius tem ainda de se confrontar com o desdém do seu agente, cansado de tentar gerir a carreira de um escritor que se recusa a escrever “romances negros”.

Numa noite de raiva, com muito álcool à mistura, Thelonius decide troçar dos tais “romances negros”, enfileirando, página a página, um montão de lugares-comuns: violência doméstica, droga, abandono parental. Assina o original com um pseudônimo, e entrega-o ao agente, com instruções para que o envie a todos os editores que haviam recusado o seu último romance.

Thelonius disparou para o ar, com o único objetivo de irritar e assustar a turba, mas acabou acertando no coração do sistema. Os grandes editores, todos brancos, adoram o livro, com o qual, têm a certeza, irão ganhar muito dinheiro — e ganham!

Numa das melhores cenas do filme, Thelonius confronta uma escritora negra de grande sucesso, Sintara Golden (Issa Rae), perguntando-lhe por que aceita escrever romances cheios de estereótipos raciais.

— Porque é isso que o mercado quer — reconhece Sintara. — Temos de lhes dar o que eles querem.

A idiotização das sociedades capitalistas contemporâneas vem fazendo com que seja cada vez mais difícil utilizar a sátira e a ironia, quer no cinema, quer na literatura, quer na vida em geral. Cord Jefferson recorre ao sarcasmo com coragem, acerto, e sem jamais perder a elegância, rindo e fazendo-nos rir do oportunismo e da hipocrisia de editores, de críticos literários e de organizadores de prêmios literários.

Thelonius não pretende mudar o mundo. “Ficção americana” ainda menos. Espero, contudo, que consiga irritar algumas boas almas, e despertar outras tantas. Também espero que Jeffrey Wright ganhe o Oscar de melhor ator. Merece muito.

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