Conceição Evaristo, Jeferson Tenório e cia: escritores negros caem no samba da Beija-flor

Com enredo que ataca o racismo, escola de Nilópolis convidou autores para desfilar

Por Bolívar Torres


Conceição Evaristo visita o barracão da Beija-Flor, que irá homenagear a ela e outros escritores negros Agência O Globo — Foto:

Desde que se radicou no Rio Grande do Sul, aos 14 anos, o escritor Jeferson Tenório havia perdido um contato mais direto com o mundo do carnaval. Sua aproximação com a festa ficara resumida a lembranças de infância, da época em que a mãe o levava para assistir aos ensaios na Sapucaí, e também a uma certa noção de seus valores culturais e artísticos.

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Tudo mudou no início deste ano, quando o autor de livros como “O avesso da pele” (Companhia das Letras) se viu experimentando a sua fantasia para o desfile da Beija-Flor, do qual participará como convidado. Seguindo a forte onda de temas afros no carnaval deste ano, presente em várias escolas, a agremiação de Nilópolis criou uma ala para escritores negros. Além de Tenório, desfilarão nomes como Conceição Evaristo, Tom Farias, Paulo Lins, Eliana Alves Cruz, Elisa Lucinda, Miriam Alves e Ana Maria Gonçalves.

Ao vestir a fantasia, Tenório, de 45 anos, entendeu literalmente na pele o impacto político do carnaval.

— Na infância, eu não entendia muito bem o que significava tudo aquilo, o que era aquela alegria, aqueles risos, aquelas danças — diz o autor, Prêmio Jabuti 2021. — Para mim, é uma volta a uma certa ancestralidade, que me fez compreender de outro modo a função do carnaval. O enredo inova ao enfatizar a produção artística dos negros, num momento em que há o desejo por novas narrativas.

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Assinado por Jorge Velloso, Léo do Piso, Beto Nega, Júlio Assis, Manolo e Diego Rosa, o enredo da Beija-Flor parte da ideia de “empretecer o pensamento”. Isso passa pelo reconhecimento de artistas plásticos, pensadores, cientistas e, claro, escritores negros. Para Conceição Evaristo, será a segunda vez que a maior festa do país a consagrará. Em 2019, a autora de “Ponciá Vicêncio” (Pallas) havia desfilado a convite da Acadêmicos da Abolição, apenas um ano depois da sua tentativa frustrada de entrar na Academia Brasileira de Letras, que provocou uma inédita campanha popular à seu favor. Ao sair pela Acadêmicos, o sentimento dos carnavalescos era de que, agora sim, Conceição se tornara imortal.

— Naquele momento, senti que uma outra academia me aclamava — diz a escritora.

Na semana passada, ela se reuniu com a Beija-Flor no Barracão do Samba e aproveitou para acompanhar os preparativos — mantidos como segredo de estado pelas agremiações.

— O samba traz questões contemporâneas como o próprio racismo, que não reconhece a capacidade negra de produzir formas de pensamento e visões de vida, de marcar um espaço na história — diz ela, feliz com a possibilidade de uma festa com o alcance do carnaval divulgar o trabalho de artistas como ela.— Muito do que se aprende no espaço formal de educação poderá ser expandido e democratizado, já que muitas pessoas serão tocadas pelo desfile. As músicas chegam mais rápido do que qualquer material didático.

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Escrever sua história

Responsável pela criação do desfile junto com André Rodrigues, Alexandre Louzada adianta uma alegoria de impacto da escola. Após mostrar diversos exemplos de pensamento e arte negra da Antiguidade aos dias de hoje, um carro carregará estátuas e máscaras africanas pintadas de branco. A pergunta que a Beija-Flor quer deixar no ar é: será que só quem pertence a uma tradição branca pode ter sua História intelectual reconhecida?

— A ala de escritores negros é uma maneira de dizer que os negros podem escrever a sua própria história— explica Louzada. — E isso desde a filosofia verbal africana, que passava de geração em geração. Hoje a população preta é que mais morre, mas é também a que mais entra na faculdade.

Autor de "Cidade de Deus" e compositor de sambas-enredo nos anos 1970, Paulo Lins lembra que as escolas de samba sempre tocaram no universo da cultura de matriz africana. Ultimamente, porém, ele vê uma necessidade maior de falar para a população negra, que não se resume ao carnaval.

— Estamos vendo uma resposta contra a opressão — diz o autor, que desfilará na "ala dos ecritores" da Beija-Flor e também na dos amigos de Martinho da Vila, pela Vila Isabel. — Mas há também uma questão mercadológica. Nos últimos 20 anos, o negro ascendeu socialmente, entrou na universidade. Surgiu uma nova classe média negra, disposta a consumir.

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