Livro de Lu Xun, 'Flores matinais colhidas ao entardecer' oferece uma chance para entender a China

Obra aponta conflitos dos chineses diante da modernidade e do encontro com o Ocidente, revelando um país ainda desconhecido dos brasileiros

Por Henrique Balbi; Especial Para O GLOBO


Em Xangai, ciclista pedala com o distrito financeiro de Pudong ao fundo encoberto pela poluição: livro ajuda a entender os caminhos tomados pela China Reuters — Foto:

Não é novidade que, por aqui, o conhecimento sobre a China é inversamente proporcional à sua importância em nossa economia. O país pode ter se consolidado como maior parceiro comercial do Brasil, mas não sabemos quase nada além de clichês pinçados de uma História antiquíssima. Daí que piadas e falas xenofóbicas tenham proliferado na pandemia, não raro vindas direto do Planalto ou por ele estimuladas.

Há iniciativas, no entanto, que buscam combater nossa ignorância. Um exemplo está no esforço de editoras universitárias para trazer obras importantes da China. Assim como a Editora Unesp, que publicou dois clássicos do pensamento do país (“Os analectos”, de Confúcio, e o “Dao De Jing”, de Laozi), a Editora da Unicamp lançou “Flores matinais colhidas ao entardecer”, de Lu Xun, em edição bilíngue com tradução de Yu Pin Fang. É o primeiro volume de uma série de clássicos apoiada pelo Instituto Confúcio da Unicamp.

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O livro é uma coletânea de textos curtos em prosa, de cunho autobiográfico, que oscilam entre memórias e ensaios. Com um tom lírico, às vezes irônico, Lu Xun (1881-1936) retrata passagens de sua infância e juventude, num arco temporal que coincide com o fim do período monárquico e o início do republicano na China. Os episódios da vida de Lu Xun vêm numa ordem cronológica, que não é lá tão férrea — como sugere o título do livro, sua disposição lembra antes um buquê do que o curso de um rio.

Se há algum fio narrativo atravessando os textos, ele bem poderia estar no alargamento do mundo, algo presente tanto no nível individual quanto no coletivo. Os primeiros episódios, por exemplo, mostram as descobertas do narrador ainda criança, conforme seu amadurecimento: o fascínio dos livros, as facetas contraditórias da personalidade de uma criada da família, os costumes e as lendas da região etc.

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Da mesma forma, no nível coletivo, Lu Xun nos faz seguir a ampliação pela qual seu narrador — tão próximo do autor — passou ao entrar em contato com novas correntes de pensamento, sobretudo ocidentais. O espanto se une à curiosidade e às reservas quando o rapaz se matricula numa faculdade de medicina no Japão, à época da guerra do país com a Rússia (1905). Ao mesmo tempo em que aprende sobre as descobertas das ciências da saúde no Ocidente, o narrador experimenta o preconceito contra chineses e a admiração por um professor, Fujino, que estimula o pensamento inquieto e inquiridor dos alunos, a fim de lhes oferecer ideias “modernas”.

A relação conflituosa entre tradição e modernidade se torna mais nítida no episódio em que o narrador de Lu Xun conta da doença de seu pai. No episódio que é talvez o ponto alto do livro, tão comovente quanto incisivo, o filho faz de tudo para ajudar o pai, acamado, seguindo as prescrições de médicos tradicionais que cobram fortunas e recomendam ervas dificílimas de obter.

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Rememorando o episódio, já tendo estudado a moderna medicina ocidental, o narrador pontua a cada oportunidade seu ceticismo diante dos tratamentos tradicionais. No entanto, não encontra mais que um consolo precário na lição de um dos seus professores (presumivelmente, Fujino): “deve-se tratar os curáveis e cuidar dos incuráveis para poupá-los ao máximo do sofrimento na morte”. O luto por parentes levados pela doença, as dúvidas em como conduzir os tratamentos, o choque de conceitos e contextos, tudo isso segue fazendo sentido, mesmo depois de um século, mesmo do outro lado do mundo.

À época da escrita, o conflito entre tradição e modernidade se desenrolava não só nas páginas de Lu Xun, de modo mais ou menos sutil, como também no seu pano de fundo concreto, histórico. Qual devia ser o caminho da China republicana? Lu Xun defendia transformações mais radicais, sendo questionado e perseguido por adversários políticos contrários a suas aspirações revolucionárias. Com Mao Tsé-Tung, as mesmas ideias se tornaram motivo de culto ao escritor — desde que, claro, fossem podadas as extrapolações inconvenientes ao regime. Nem a recusa automática nem o elogio obrigatório costumam ser bons critérios de interpretação.

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Diante de Lu Xun, o leitor brasileiro se vê desafiado a se situar num período especialmente turbulento da história de um país pouco conhecido por nós. As notas, o texto introdutório, os prefácios, todo o aparato crítico da edição tendem a ajudar nisso. Mas o leitor é desafiado também a ler Lu Xun com olhos livres, a montar por si mesmo o buquê que lhe parecer melhor, mais adequado, mais completo.

Henrique Balbi é escritor e professor de literatura, mestre em Estudos Brasileiros

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