Christhiano Aguiar, autor de 'Gótico nordestino': ‘A pandemia desnudou contradições que já eram nossas'

Contista paraibano comemora segunda edição do livro em que os horrores atuais casam com a antiga estética sombria

Por Eduardo Graça — São Paulo


Christhiano Aguiar, autor de 'Gótico Nordestino' Divulgação/Renato Parada

Caso raro de contista nacional com sucesso de público e crítica, o paraibano radicado em São Paulo Cristhiano Aguiar acaba de celebrar a segunda edição de “Gótico nordestino”, três meses depois de o livro chegar às livrarias. Professor da Universidade Mackenzie, um dos “Vinte melhores escritores brasileiros” da lista da Granta de 2012 e autor do também elogiado “Na outra margem, o Leviatã” (2018), o pesquisador de ficção científica de 41 anos reuniu nove histórias passadas em cenários nordestinos, porém livres de regionalismos ortodoxos. Metonímia do Brasil, sua narrativa bebe de um passado repleto de medo para alimentar o real dominado pelo horror que nos circunda. A estética sombria do gótico, conta, ajudou-o a decifrar o atual capítulo da tragédia brasileira.

O que é um gótico nordestino?

Minhas primeiras referências para o livro foram E.T.A. Hoffman, Mary Shelley, Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft e autores contemporâneos interessados em resgatar a literatura gótica, como as argentinas Mariana Enriquez e Samantha Schweblin. Depois voltei a Alan Moore e seu “gótico americano”, com os protagonistas viajando pela América profunda. Assim, o que eu escrevia era um “gótico nordestino”.

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E ele estava lá, esperando alguém batizá-lo?

O gótico nordestino já está no José Lins do Rego (1901-1957), na Rachel de Queiroz (1910-2003)... Brinco que mesclo, no livro, “Menino de engenho” com “O corvo”, Zé Lins com Poe.

Christhiano Aguiar, autor de 'Gótico nordestino' — Foto: Divulgação/Renato Parada

De que modo José Lins do Rego se aparenta com Poe?

Aparentemente muito diferentes entre si, os dois viveram à margem do centro literário. E tratam de fantasmagorias do passado. O Zé foi o cronista maior da decadência canavieira no Nordeste, de um certo tipo de patriarcado. Já Poe é fantasmagórico literal e simbolicamente, como no corvo que representa o luto recente. Em ambos, as sombras se destacam, e memória e passado atormentam o presente. Há traços diretos do gótico em “Fogo morto”, do Zé. E o Nordeste do livro é metonímia do Brasil. Passeio pela história recente do país de forma propositadamente obscura. Começo o livro na época do cangaço, já “O vampiro” se dá nos anos 1950, há uma história na ditadura militar, outra na pandemia e um conto num futuro próximo, meio “Black mirror”. Meu foco é no contexto, não numa “nordestinidade” regionalista.

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“Gótico nordestino” se lê com os horrores do Brasil de hoje na cabeça e ecos sombrios de um passado mal resolvido...

Pensava nisso ao escrever o livro. Desde 2018 vivemos à mercê de uma energia retrô barra pesada. Comecei a rascunhá-lo logo após as eleições e coloquei o ponto final em 2021. Já me perguntaram por que há tanta gente doente nele e não tinha me tocado disso, mas faz todo sentido. O conto “Fire starter” (inspirado nas queimadas de cana que assombravam o adolescente Cristhiano) simboliza minha percepção de que parte do Brasil ligou o botão de autodestruição, o “dane-se, é isso mesmo”. Minha angústia, o purgar de mim, inclusive durante a pandemia, está toda ali. Fui mergulhando cada vez mais nesta estética sombria, gótica, necessária para compreender o real à minha volta.

“O vampiro” termina com a protagonista ruminando se não foi ela quem, inadvertidamente, trouxe o mal para sua comunidade, ou se o horror também parte de dentro de nós...

Ali busquei investigar as origens do mal. O ponto de partida não foi político, mas a extrema direita está no poder e a pandemia desnudou contradições que já eram muito nossas. É preciso ter coragem para reconhecer que o mal não está sempre do outro lado da rua.

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