Francisco Bosco: 'As redes sociais operam por meio de uma agitação permanente do nosso narcisismo'

Em novo livro de ensaios, ‘O diálogo possível’, escritor investiga as origens da degradação do debate público e deixa pistas para a reconstrução democrática

Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro


O escritor Francisco Bosco — Foto: Bel Pedrosa

O novo livro de Francisco Bosco, “O diálogo possível” (Todavia), não tem a pretensão de desfazer o nó que paralisou o Brasil nos últimos anos. Incapaz de se comunicar, incapaz de buscar consensos, o país vive em plena fratura. Mas, em vez de apontar soluções, o ensaísta de 45 anos tenta entender como o debate público começou a degradar. Quando a cultura popular deixou de ser um ponto de unificação? Em que momento a autoimagem nacional ruiu levando junto as bases democráticas? Em que medidas liberais e grupos identitários podem encontrar consensos? Bosco deixa pistas para que a sociedade entenda melhor os seus problemas e assim canalize sua energia nas batalhas certas. Em entrevista por telefone, ele repassa algumas das principais questões discutidas no livro.

Como as jornadas de junho de 2013 afetaram a nossa capacidade de diálogo?

Durante a primeira parte da redemocratização, a sociedade respaldou um certo caminho institucional, que apresentou as suas conquistas e limitações. Mas, a partir de 2013, a sociedade atacou as instituições partindo de premissas corretas, de que havia a necessidade de irrupção de algo novo. Cada agente social tentou encontrar respostas fragilizando o funcionamento institucional e comprometendo a possibilidade de soluções. Não foi um processo claro e consciente, mas, sim, um atropelo de movimentos. A sociedade tomou o rumo de submeter os meios aos fins, de fazer justiça sem o direito. Todos os agentes que participaram desse processo têm agora que fazer um balanço desse processo, um debate aberto, para definir que caminho a sociedade quer seguir agora.

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Outro fenômeno que desponta em 2013 é o que você identifica como um desejo de pertencimento a uma identidade política. Por que isso seria uma ilusão?

Um ponto incontroverso na observação da dinâmica do debate público nos últimos anos mostra com muita clareza que as pessoas descobriram os prazeres narcísicos do pertencimento a um laço identificatório grupal na política. Trocando em miúdos: quando a pessoa faz parte de um grupo unido por um laço ideológico, passa a reproduzir determinadas premissas e códigos desse grupo porque isso faz com que ela seja aceita e prestigiada por ele. Essa recompensa narcísica tem um custo social grande porque as pessoas passam a ter um compromisso maior com o grupo do que com a própria realidade. Se os fenômenos que eclodem quase diariamente na realidade exigem uma apuração mais rigorosa e essa apuração é percebida como passível de entrar em choque com as verdades do grupo, a tendência de cada grupo é sacrificar as exigências de interpretação da realidade em nome da aceitação.

Você também aponta que a cultura popular, que teria sido responsável por consolidar uma identidade idealizada do país, foi fraturada nos últimos anos. Por que?

Diferentemente de outros países, o Brasil não teve uma revolução moderna refundadora. A França, por exemplo tem o seu grande mito fundador na revolução francesa. Portanto, num signo abstrato e político, a identidade francesa é basicamente a identidade republicana democrática que emerge com a revolução. O brasil não tem nada disso porque é esse país onde as instituições sempre conseguiram de forma astuciosa se modernizar por um princípio conservador. O Brasil não tem nenhum marco fundador de união porque cada momento decisivo da história política brasileira significa coisas muito diferentes para os diferentes grupos sociais. A nossa proclamação da república, por exemplo, não foi capaz de criar união porque perpetuou a desigualdade. Quem foi capaz de criar uma instância de reunião nacional? A cultura popular. Quando chegamos nos anos 40 temos uma cultura popular completamente consolidada e reconhecida pelo povo como a única dimensão da experiência brasileira em que fomos capazes de realizar coisas como o efetivo protagonismo negro, o cruzamento e mistura com muito maior grau de autonomia entre grupos sociais muito distantes. Essa é a espécie de utopia verdadeira do Brasil. E assim ela funcionou no século XX inteiro.

E como ela deixou de ter esse papel?

O problema é que, simultaneamente à formação dessa utopia, houve uma consciência de que ela nunca se realizava na sociedade brasileira e que a existência desse símbolo de unificação funcionava também como um elemento que prejudicava o avanço social brasileiro. Porque funcionava como um elemento de dissolução. Então, por meio de diversos movimentos, foi se consolidando a consciência de que era preciso explicitar os conflitos de classe, de raça e de gênero que sempre existiram no Brasil e que para isso era preciso sacrificar essa dimensão cultural. E que, apesar de todas as suas virtudes, não deixava de funcionar também como um fator que hesitava a explicitação dos conflitos brasileiros. O resumo desse processo é que a sociedade brasileira sacrificou a cultura popular para poder explicitar os seus conflitos

Já se falou muito da influência da lógica das redes sociais no envenenamento do debate público. Mas as redes também tiveram papel importante na democratização do diálogo. Como não jogar fora o bebê junto com a água?

No livro anterior, defendo que o debate público ganhou características muito mais inclusivas. Fui formado em um debate cujas instâncias principais eram imprensa, circuito editorial, universidade... E em todas havia um filtro elitista, reduzindo os atores que participavam desse debate. Havia mais homens, mais brancos, mais pessoas com formações segundo o sistema da classe brasileira. Com a emergência das redes sociais, mas também com as políticas públicas do governo Lula, surgiu um novo espaço. O problema é que as redes sociais também têm como características uma lógica do reconhecimento. As redes sociais operam por meio de uma agitação permanente do nosso narcisismo. Você está lutando o tempo todo por um reconhecimento imediato que se revela por curtidas, likes, viralizações. Mas pensar é uma atividade antinarcísica, porque exige abrir-se à possibilidade de colocar as suas ideias em xeque.

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Por outro lado, a manipulação de uma ideia da “cultura do cancelamento” não pode ser às vezes uma ação do status quo para se blindar das críticas dos que pela primeira vez ganharam espaço no debate?

Isso existe e se revela entre outras formas com essa espécie de inversão astuciosa, que consiste em tentar transformar críticas a posições de poder tradicionais em uma posição autoritária. Por isso considero muito importante que a sociedade saiba fazer uma distinção entre o que é uma reação conservadora interessada em frear qualquer sentido democratizante e o que são indivíduos que defendem a plena igualdade de direitos civis, mas que entretanto não necessariamente estão alinhados às premissas e aos métodos dos movimentos que a gente deve chamar de identitários. A sociedade deve reconhecer que as lutas por direitos podem se dar por diversos meios e ela pode acatar certos dissensos.

Pode dar um exemplo?

Dentro do feminismo que considero identitário há uma corrente que considera toda relação heterossexual como constitutivamente violenta. Ora, você pode ser perfeitamente a favor da plena igualdade de direitos no campo dos gêneros sem concordar com essa premissa. O que tem que evitar é que, no debate dentro dos grupos pró-democracia, uma posição que contrarie certo consenso formado dentro dos movimentos identitários seja tomada como ou racista ou misógina, e por aí vai.

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