Fã de Anitta, escritora Tomi Adeyeme descobriu sua ancestralidade na Bahia: 'Ninguém para o trabalho dos orixás'

Autora de fantasias afrofuturistas participa da Bienal Internacional do Livro de São Paulo

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo


A escritora americana Tomi Adeyme, elogiada por Beyoncé, cujos livros vão virar filmes Arquivo pessoal

A escritora americana Tomi Adeyeme aparece no vídeo vestida de verde, com adereço de pelúcia amarelo no pulso e um pouco esbaforida. Assim que consegue ligar o microfone, ela se desculpa pelo atraso: estava sem wi-fi. E, em menos de dois minutos de conversa, começa a falar espontaneamente sobre um de seus ídolos: Anitta.

— Ela me inspira muito! É uma artista de primeira linha, uma empreendedora com ambições globais, uma mulher que não esconde quando está brava e fala abertamente sobre sua sexualidade. Gosto disso. Me identifico com ela. Nos bailinhos da escola, eu enlouquecia na pista de dança e as brancas não entendiam o que estava acontecendo (risos). Tenho certeza de que Anitta e eu somos primas. Quero aprender a rebolar como ela — diz Adeyeme, que participa hoje, às 17h30, da 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. — As séries de Anitta na Netflix são minha Bíblia! Num episódio de “Vai, Anitta”, ela diz algo como “o que começa no Brasil termina no mundo todo”. Essa frase me tocou muito, porque essa é minha história.

Reino de Orïsha

Adeyeme tem 28 anos, é filha de pais nigerianos e autora de dois livros de fantasia inspirados na mitologia iorubá, publicados no Brasil pela Rocco. “Filhos de sangue e osso” e “Filhos de virtude e vinganças” são os dois primeiros volumes da trilogia “O legado de Orïsha”.

Lançado em 2018, “Filhos de sangue e osso” apresenta o reino de Orïsha, onde o monarca quer extinguir a magia e persegue seus guardiões, os maji. Cabe à heroína, Zélie, e aos filhos rebeldes do rei, Amari e Inan, impedir que o poder dos ancestrais seja varrido de Orïsha. Já em “Filhos de virtude e vingança”, de 2019, a magia está de volta a Orïsha e já não pertence apenas aos maji, mas a todos, até a seus inimigos. A nova missão de Zélie é garantir a integridade de um reino dividido, onde todos têm poderes sobrenaturais.

Filha de uma muçulmana e um cristão, Adeyeme só conheceu as tradições religiosas africanas na Bahia. Em 2015, ganhou uma bolsa da Universidade Harvard para visitar o Museu Afro-Brasileiro em Salvador. Planejava escrever um romance sobre duas irmãs africanas, uma escravizada nos Estados Unidos e outra no Brasil. No entanto, encontrou o museu baiano fechado para reforma. Sem falar uma palavra de português, tentou convencer o guarda a deixá-la entrar. Não deu certo, mas, graças aos orixás, não perdeu a viagem.

— Começou a chover, e eu entrei numa loja de souvenir. Como o dono estava expulsando quem só estava se escondendo da chuva, fingi que ia comprar alguma coisa. Foi quando vi quatro cartões-postais que retratavam orixás: Ogum, Iemanjá, Xangô e Oxum. Fogos de artifício explodiram na minha cabeça. Foi como encontrar um tesouro no meu quintal, porque eu sou iorubá. Só que do outro lado do mundo — conta Adeyeme, sobre o episódio que inspirou seus livros. — Perguntei para minha mãe se ela conhecia os orixás e ela disse que sim! Como assim ela nunca me falou sobre eles? Eu era nerd, gostava de X-Men. Ela podia ter me dito que Tempestade era Iansã!

E o que começou no Brasil terminou no mundo todo. Os livros de Adeyeme chegaram ao topo da lista de mais vendidos do New York Times e fizeram carreira internacional. A Paramount vai transformá-los em filmes. Em 2020, a escritora foi eleita uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Também chamou atenção de Beyoncé, que a incluiu numa lista de 45 personalidades negras que deram contribuições valiosas à comunidade afro-americana, ao lado de Malcolm X, James Baldwin e Nina Simone.

Próximo passo

Adeyeme já está trabalhando no último volume da trilogia. A parede do escritório de onde ela fala com o GLOBO, em Los Angeles, está coberta de post-its com seus planos para o próximo livro. Ela promete que os leitores brasileiros vão se ver ainda mais no reino de Orïsha, onde o templo se chama Candomblé.

De uns anos para cá, fantasias influenciadas por mitologias africanas e ambientadas num continente intocado pelo colonialismo têm aparecido com mais frequência nas livrarias — e nas listas de mais vendidos. Quando ficção científica e ancestralidade se misturam, essa estética ganha o nome de “afrofuturismo”, rótulo que já colou em Adeyeme.

A religiosidade tradicional africana também inspirou romances como “O segredo do oceano”, da britânica de ascendência nigeriana Natasha Bowen, e “Leopardo negro, lobo vermelho”, comparado a um “Game of thrones negro”, do jamaicano Marlon James.

No Brasil, um dos expoentes do afrofuturismo é Fabio Kabral, autor de livros como “O caçador cibernético da Rua Treze” e “O blogueiro bruxo das redes sobrenaturais”. Hugo Canuto concorreu ao Prêmio Jabuti com “Contos dos orixás”, graphic novel que representa as entidades como super-heróis. No ano passado, Ale Santos lançou o romance “O último ancestral”, que descreve um futuro ultratecnológico e racialmente segregado no qual as religiões de matriz africana foram proibidas.

Lavagem cerebral

Adeyeme acredita que a celebração da ancestralidade africana pela cultura pop ajude a combater preconceitos e, em especial, o racismo religioso. E mais: ela suspeita que os próprios orixás estejam por trás do fenômeno.

— Meu ego é tão grande quanto o de Kayne West, mas devo dizer que eu nunca estive no controle desse processo todo. Os orixás viram que eu estava pronta e me pegaram pela mão. Esse ressurgimento da cultura africana é mágico, é obra do divino. Essas histórias contadas há milhares de anos ainda são importantes para a Humanidade. Filmes com super-heróis orixás precisam ser tão populares quanto os do Homem-Aranha— diz Adeyeme, que já ouviu um pai de santo dizer que Zélie, a protagonista da trilogia, é uma mistura de Iansã e Iemanjá, entidades com as quais a própria escritora se identifica. — Fomos vítimas de lavagem cerebral e ensinados a rejeitar nossa cultura. Mas a verdade é que tudo o que se parece, fala e se mexe como a gente está na base da cultura popular de todo o mundo. Até os cantores de K-Pop admiram Kendrick Lamar e Jay-Z. Ninguém pode parar o trabalho dos orixás.

O resgate pop da cultura africana é simultâneo ao acirramento das lutas raciais. Adeyeme escreveu seus romances com lágrimas nos olhos, enquanto imagens de violência policial e protestos do Black Lives Matter tomavam o noticiário. Não à toa, ela diz que os temas da trilogia são “violência e resistência”. No primeiro capítulo de “Filhos de sangue e osso”, Zélie é atacada por um guarda. A cena é baseada num vídeo em que um policial branco derrubou uma moça negra e tentou mantê-la imobilizada no chão numa festa no Texas.

— Canalizo minha dor e minha raiva na escrita. Meus sonhos são minhas armas de luta. Temos que escolher nossos inimigos. O meu é o racismo estrutural. Sei que esse é um grande problema aí no Brasil. Anitta mostra isso na série — afirma. — Temos que lutar como Anitta.

Serviço:


“Filhos de sangue e osso”
Autora:
Tomi Adeyeme. Tradução: Petê Rissatti. Editora: Fantástica Rocco. Páginas: 560. Preço: R$ 69,90.

“Filhos de virtude e vingança”
Autora:
Tomi Adeyeme. Tradução: Petê Rissatti. Editora: Fantástica Rocco. Páginas: 432. Preço: R$ 74,90.

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