Donna Haraway: 'A Amazônia tem integridade própria, não é uma prestadora de serviços'

Autora do influente 'Manifesto ciborgue' lança 'Quando as espécies se encontram' no Brasil, comenta os desafios do feminismo e critica comentário do Papa Francisco

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo


Donna Haraway: 'me irrita quando lugares cheios de seres humanos e não humanos são tratados como se existissem apenas em função de um outro. A derrubada da Amazônia terá implicações planetárias, essa é uma preocupação real' Divulgação

Em 1985, Donna Haraway borrou as fronteiras entre filosofia e cultura pop ao publicar “Manifesto ciborgue”, uma tentativa de reanimar a esquerda, à época atordoada pela revolução conservadora de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Professora da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, Haraway argumentou que os avanços tecnológicos tornaram impossível distinguir o humano da máquina. Aproveitou ainda para criticar alguns pressupostos do feminismo, como a crença de a categoria “mulher” era igualmente inteligível em diferentes culturas e que essa suposta identidade feminina seria suficiente para criar laços de solidariedade.

Incluída no balaio dos filósofos chamados (às vezes pejorativamente) de “pós-modernos”, nos últimos anos Haraway deixou os ciborgues de lado para teorizar sobre as conexões que estabelecemos com outros organismos vivos. No ano passado, chegou ao Brasil “O manifesto das espécies companheiras”, pela Bazar do Tempo. Em agosto, a Ubu lançou “Quando as espécies se encontram”, no qual a filósofa e bióloga expande suas reflexões sobre a transformação dos animais em mercadorias (e consumidores) e também sobre feminismo, raça e classe.

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Em entrevista por vídeo ao GLOBO, Haraway, que vive com dois cães, cinco galinhas, um polvo de pano e uma boneca que pede por “aborto libre” (em espanhol mesmo), criticou dos pais de pet ao papa Francisco e respondeu às acusações de que ajudou a abrir caminho para a “pós-verdade”.

Em “Quando as espécies se encontram”, você critica a formação de um mercado de luxo para cães. Qual a sua opinião sobre os “pais de pet”?

A apropriação de nossos laços de afeto com os animais por uma cultura mediada pela mercadoria é uma distorção escandalosa do que significa viver juntos. Mas como não participar disso? Não é uma questão de escolha, mas de reimaginar como viver juntos respeitando o fato de que somos de espécies diferentes. Fico furiosa quando cães são tratados como crianças! Eles não são crianças. São filhotes por um tempo, depois crescem e envelhecem. São membros de uma outra espécie que têm suas próprias maneiras de interagir e se comunicar.

Você inventou o slogan “Faça parentes, não bebês”. Já o Papa Francisco chamou de egoísta quem prefere adotar um pet a ter um filho.

Francisco foi ignorante nesse comentário. Ele defende o aumento da natalidade humana, o que é desastroso para o planeta e para os direitos reprodutivos das mulheres, e não entende o quão profundas podem ser as relações com outros organismos vivos, que não substituem bebês. Se eu amo cães, não quer dizer que eu não ame crianças. O amor é soma, não subtração. Tendo filhos ou não, somos todos responsáveis pelas crianças. De fato, há pessoas que ilustram esse comentário do papa, mas esse egoísmo, essa incapacidade de ampliar o próprio mundo, não é culpa dos animais.

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Recentemente, perguntada sobre as diversas crises que o mundo atravessa, você começou sua resposta pela Amazônia. Por que uma discussão sobre a crise atual deve passar pela Amazônia?

A imprensa internacional fala na Amazônia como o “pulmão do mundo”, como se fosse um sistema de higiene para o resto do planeta. Me irrita quando lugares cheios de seres humanos e não humanos são tratados como se existissem apenas em função de um outro. A derrubada da Amazônia terá implicações planetárias, essa é uma preocupação real, mas a floresta tem integridade própria, não é só uma prestadora de serviços. A floresta é palco da história da relação complexa e sofisticada entre os seres humanos e outros organismos vivos e também da história da colonização e da contínua destruição dos povos indígenas e de vários modos de viver e morrer. Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski (antropólogo e filósofa brasileiros) me ensinaram muito sobre a Amazônia.

Você e outros filósofos chamados de “pós-modernos” são acusados terem criado um ambiente de “relativismo” que possibilitou o surgimento da “pós-verdade”. Como você responde essa crítica?

Essa crítica é importante, embora haja alguma má-fé nela. Erramos ao não engajar mais cientistas na discussão. Adotamos uma linguagem hermética que não fomos capazes de traduzir. A discussão não era sobre se a verdade era ou não socialmente construída, mas sobre como teorias e fatos são construídos e sustentados. Isso não é relativismo no sentido da pós-verdade, é uma discussão sobre bases materiais. Nossos argumentos foram propositalmente mal-entendidos e atacados, mas, de fato, deveríamos ter ido mais devagar e entendido melhor a política envolvida.

Seu trabalho foi essencial para a renovação dos estudos feministas a partir da década de 1980. Que feminismo te interessa hoje?

bell hooks já dizia que o feminismo é um verbo, um comprometimento contínuo, cheio de amor e raiva, com as mulheres e as pessoas trans. Você está vendo a minha boneca pedindo “aborto libre” ali em cima do aquecedor? Ela tem trabalho a fazer na luta por liberdade e justiça reprodutiva e pela integridade dos corpos de todos aqueles que trazem outras pessoas ao mundo. A luta pelos direitos de amar e de ter filhos ou não são prioridade hoje. Na América Latina, houve avanços em relação aos direitos reprodutivos, mas o feminicídio é um problema imenso. Acredito que o feminismo esteja mais forte na América Latina que nos Estados Unidos porque aí é mais perigoso ser mulher.

No “Manifesto ciborgue”, você criticou certo identitarismo do movimento feminista de então. Como você avalia a chamada “política identitária” hoje?

Nunca fui contra a política identitária, mas ao encapsulamento das identidades, que são múltiplas, complexas, nem sempre intencionais e podem ser mobilizadas politicamente. Confundir a categoria, o rótulo, com a pessoa é um erro filosófico e político. É burrice e leva ao imobilismo.

Pode dar um exemplo?

Como reconhecer nossas diferenças sem repudiar completamente o outro? Como não confundir a categoria “inimigo político” com a pessoa real diante de mim? Tenho uma amiga antropóloga que trabalha no Kansas com agricultores que não se enfurecem quando você fala em mudanças climáticas, mas estão interessados no que chamam de “cuidar da Criação” e, nesse sentido, são incrivelmente progressistas. Precisamos encontrar uma linguagem que nos permita engajar quem está em lados opostos. Um amigo comunista sempre diz: “encontre o consenso”. Qual é o consenso que nos possibilita avançar em uma direção progressista?

Capa de "Quando as espécies se encontram", livro da filósofa e bióloga americana Donna Haraway publicado pela Ubu — Foto: Divulgação

Serviço:

"Quando as espécies se encontram"

Autora: Donna Haraway. Tradução: Juliana Fausto. Editora: Ubu. Páginas: 416. Preço: R$ 99,00.

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