Em livro de ensaios, Elena Ferrante explica projeto literário da 'Tetralogia napolitana'

Lançado nesta quarta-feira (4) pela Intrínseca, 'As margens e o ditado' questiona como aprimorar estilo feminino a partir de tradição forjada por homens

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo


As atrizes Gaia Girace e Margherita Mazzucco na adaptação da HBO de “A amiga genial”, romance de Elena Ferrante Divulgação

Ao topar com “As margens e o ditado”, livro de ensaios de Elena Ferrante que chega nesta quarta-feira (4) às livrarias, os leitores da “Tetralogia Napolitana” talvez pensem imediatamente na desmarginação, a condição sofrida pela personagem Lila Cerullo e caracterizada pela sensação, acompanhada de um desamparo aterrador, de que o contorno das pessoas e das coisas “se desmanchava como fio de algodão” e as próprias margens da vida se dissolviam. “Uma coisa se desmarginava e se precipitava sobre outra, era tudo uma dissolução de matérias heterogêneas, uma confusão, uma mistura”, explica Lenù, a narradora, em seu esforço de estabilizar em sua escrita a fala convulsa da amiga.

No entanto, as margens a que Ferrante se refere nos ensaios são, a princípio, menos angustiantes: são as linhas vermelhas traçadas verticalmente em seus cadernos escolares, que indicavam os limites que a escrita não deveria ultrapassar. Punida com frequência por desrespeitar essas linhas, Ferrante recupera essa imagem para explicar como pensa seu projeto literário.

“As margens e o ditado” reúne quatro ensaios “sobre os prazeres de ler e escrever”. Três deles — “A caneta e a pena”, “Água-marinha” e “Histórias, eu” — foram encomendados pelo Centro Internazionale di Studi Umanistici Umberto Eco, de Bolonha. Já “A costela de Dante” foi escrito a convite de uma associação de italianistas e elogia o autor da “Divina comédia” pela criação de Beatriz, uma mulher capaz de falar por si própria. Por ouvir o que ditavam os novos tempos, Dante inaugurou um novo estilo — stil nuovo —, que conjugava a “análise viva e esmerada do próprio tempo” e “a memória ainda mais esmerada dos escritos do passado”. Também é essa a preocupação da escritora italiana, discípula de Beatriz: como pode uma mulher aprimorar um estilo próprio, atento ao real, a partir de uma tradição e de uma língua forjadas por homens?

Primeiro, é preciso enfrentar as margens. Em “A caneta e a pena”, Ferrante distingue duas modalidades de escrita: a “aquiescente” e a “impetuosa” — em “Água-marinha”, a autora se referirá a ambas como “diligente” e “desmarginada”. A primeira é obediente às margens, às linhas vermelhas, às convenções literárias. Tenta imitar a voz masculina dos clássicos: “eu imaginava me tornar homem, mas, ao mesmo tempo, permanecendo mulher”, confessa.

A segunda é a prosa convulsionada, portadora da “verdade”, que dissolve as fronteiras entre os gêneros literários e arrosta o bom gosto, um jorro que vem não se sabe de onde e do qual a caneta só consegue fixar algumas gotas no papel, entre uma margem vermelha e outra. A solução, diz a autora, é se ater às margens, alinhar-se a “estruturas tradicionalmente robustas”, adotar “técnicas de longa data” e esperar, pacientemente, que surja dali uma escrita enérgica o suficiente para deformar as margens.

Ferrante é uma boa leitora de si mesma. De fato, a opção por escrever romances obedientes às convenções literárias, mas que se permitem alguma convulsão interna, a transformou em fenômeno global, autora de uma “alta literatura popular”, capaz de fisgar tanto leitores de best-seller como parte da crítica especializada.

Nessa escolha residem não só os méritos (inegáveis), mas também os limites de seu projeto literário. Ferrante fala em “habitar as formas”, ou seja, respeitar as margens, reafirmar sua vocação realista e rejeitar as “guinadas neovanguardistas” que diz ter experimentado quando ainda era uma escritora aprendiz. No entanto, ela também ambiciona “deformar tudo o que não nos contém por inteiro, que não pode de modo algum nos conter”.

Sem clichês

Note-se: “deformar” não se refere à forma. Não é realmente um “desmarginar”, mas a recusa de alguns clichês — o final feliz, a afirmação das virtudes femininas, a vitória da heroína etc. É entre uma margem e outra que o “ato convulso” acontece, no conteúdo e não na forma. Não à toa, o crítico italiano Massimo Onofri disse que as “inquietações estilísticas, estruturais, epistemológicas da melhor narrativa de hoje” passam longe da prosa de “A vida mentirosa dos adultos” (romance que inspirou a série que estreia nesta quarta na Netflix).

Mas Ferrante não deve se importar com as críticas. Ela sabe — e o afirma no ensaio “Histórias, eu” — que, a partir de uma tradição masculina, a construção de um estilo feminino que seja “viva e esmerada do próprio tempo”, é um esforço conjunto, que necessita tanto da prosa diligente de uma Lenù como da fúria desmarginada de uma Lila.

Ferrante admite que, na “Tetralogia Napolitana”, quis que a impetuosidade de Lila emergisse no texto aquiescente da primeira. “É preciso abrir mão, por um longo intervalo de tempo, da distinção entre quem só faz livros medianos e quem fabrica universos verbais imprescindíveis”, afirma a escritora, cuja maior contribuição à literatura talvez seja sua capacidade de fazer as duas coisas.

Serviço:

“As margens e o ditado”

Autora: Elena Ferrante. Tradução: Marcello Lino. Editora: Intrínseca. Páginas: 128. Preço: R$ 39,90.

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