Filhos da editora e tradutora Heloisa Jahn abrem sebo em São Paulo com acervo deixado pela mãe

Sebinho da Helô promete agitar a vida cultural de Mirandópolis, bairro da Zona Sul da capital paulista onde até então não havia livrarias

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo


Antonio de Macedo e Maria Guimarães no Sebinho da Helô, em São Paulo Maria Isabel de Oliveira

Quem for ao Sebinho da Helô, em Mirandópolis, na Zona Sul de São Paulo, corre o risco de se interessar por um livro e, ao perguntar o preço, ouvir de um dos donos, os irmãos Maria Guimarães e Antonio de Macedo, que aquele exemplar não está à venda. Não é maldade. É que tesouros podem estar escondidos entre uma página e outra. Todos os livros ali expostos (e potencialmente à venda) pertenceram a Heloisa Jahn, mãe de Maria e Antonio e uma das mais respeitadas editoras e tradutoras do país, morta em junho aos 74 anos. Uma cliente já encontrou fotos dos dois irmãos ainda crianças ao folhear um livro.

Enquanto conversavam com O GLOBO, eles descobriram um exemplar de “Raro mar”, de Armando Freitas Filho, autografado pelo próprio poeta: “Helô: nunca te vi, sempre te amei. Com um beijo do Armando. Rio, 26.IX.2006.” A dedicatória é uma referência ao filme com Anne Bancroft e Anthony Hopkins no qual uma americana e um inglês enviam livros de um lado ao outro do Atlântico. Assim como Freitas Filho enviou seu livro do Rio para Paris, onde estava Heloisa.

Premiada com o Jabuti

A inauguração oficial do Sebinho é neste sábado (11), mas as portas já estão abertas desde que começou a arrumação do espaço, no fim do ano passado. Na entrada, um retrato de Heloisa recebe os visitantes. Maria e Antonio calculam que a mãe acumulou cerca de cinco mil livros. Quase todos foram para o sebinho, com exceção de preciosidades como exemplares de “O canto breve dos desamados”, livro de poemas publicado por Heloisa aos 19 anos, e edições autografadas por Julio Cortázar, que ela conheceu em Paris, onde se exilou na ditadura militar. Eles se corresponderam até a morte do autor de “O jogo da amarelinha”, em 1984. Heloisa se tornou tradutora de Cortázar e, ano passado, dividiu com Josely Vianna Baptista o Prêmio Jabuti pela tradução dos contos do argentino.

Não é difícil encontrar dedicatórias afetuosas na biblioteca de Heloísa, escritas por autores que ela editou. Algumas ficarão expostas no Sebinho. “Para Helô, a pessoa mais importante desse livro — que transformou esses poemas em um livro lindo — sem palavras para te agradecer. Beijo enorme da fã Alice”, escreveu a poeta Alice Sant’Anna em “Rabo de baleia” (Cosac Naify). Já José Roberto Torero foi mais brincalhão em “Terra Papagalli” (Companhia das Letras), escrito em parceria com Marcus Aurelius Pimenta: “Para Helô, que também é responsável pelos acertos (poucos) e erros (tantos) desse livro. Deus te proteja”.

Nascida em Montenegro (RS), Heloisa se mudou para São Paulo para estudar Filosofia na USP, mas não concluiu o curso devido ao cerco dos militares à universidade após o golpe de 1964. Exilada na Europa, descobriu-se tradutora. Ao longo da vida, verteu para o português autores como Jorge Luis Borges, George Orwell e Hans Christian Andersen. Falava inglês, espanhol, francês e dinamarquês e se virava em italiano, alemão e sueco. Em 1985, ingressou na editora Brasiliense e de lá foi para a Companhia das Letras, na qual editou Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza, entre outros escritores. Também trabalhou na Cosac Naify e cogitou ser livreira.

— Ela pensava em abrir uma livraria ou um sebo, mas não deu certo. Quando herdamos os livros, percebermos que poderíamos cumprir essa vontade dela — conta Antonio.

O acervo do Sebinho reflete não só o gosto como a trajetória de Heloisa como editora e tradutora. Há livros nos diversos idiomas que ela dominava. Muita poesia e romance policial, gêneros de que gostava. Também não falta psicanálise nem filosofia. Livros nos quais ela trabalhou também estão espalhados pelas estantes, como uma antologia de poemas eróticos de Paul Verlaine, traduzido para a Brasiliense. E obra completa de Erico Verissimo, que ela editou na Companhia das Letras. Há até uma edição de “O prisioneiro”, publicada pela Editora Globo de Porto Alegre, autografada pelo autor gaúcho: “Para todas as rosas do meu jardim, este delicado ramalhete de granadas-de-mão. Um abracíssimo do Erico Verissimo”.

Maria e Antonio não sabem se a mãe conheceu Verissimo nem de onde saiu aquele livro. Nos últimos tempos, ela andava encantada com outro escritor gaúcho, José Falero. Num texto, elogiou-o por naturalizar “a língua vida da quebrada”.

— Ela sempre se interessou pela recriação literária da linguagem das periferias — lembra Maria. — Nos anos 80, ela traduziu “Outsider” (de Susan E. Hilton), que fala de gangues. Na época, ela disse que não conhecia aquela língua. Tanto que pediu ajuda ao motoboy da Brasiliense, o Paulinho, que era punk. Ela traduzia para o português e ele adaptava tudo para a língua das ruas.

Poemas inéditos

Heloisa deixou um livro de poemas inédito: “Palindroma”, parceria com o artista plástico Carlos de Moraes. Os filhos pensam em publicá-lo e também em reeditar “O canto breve dos desamados”. Eles esperam que o Sebinho agite a vida cultural do bairro, onde até então não havia livrarias. Amigos de Heloisa já os procuraram para doar livros e reforçar o acervo do sebo.

— Mais do que nunca, tenho me dado conta da vida afetiva gigante dos livros — diz Maria.

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